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A renda básica segundo Paine

Introdução

Justiça Agrária foi a última das principais obras de Paine. Publicada no inverno de 1795, ela mostra Paine retornando aos temas da pobreza e da desigualdade que o preocupavam na Parte Dois de Direitos do Homem. O ensaio contém sua argumentação mais abrangente sobre propriedade e justiça social, e inclui uma proposta para a criação de um fundo público para reembolsar todos os cidadãos e cidadãs ingleses pelo que Paine qualifica como ‘a perda de sua herança natural, por meio da introdução do sistema de propriedade fundiária’.

Texto

Preservar os benefícios daquilo que se chama de vida civilizada e ao mesmo tempo remediar o mal que ela produziu deveria ser considerado um dos primeiros objetivos da legislação reformada.

Se este estado chamado com orgulho, e talvez erradamente, de civilização trouxe mais benefícios ou prejuízos à felicidade geral do ser humano, é uma questão que pode ser fortemente contestada. Por um lado, o espectador fica fascinado pelas aparências esplêndidas; por outro, ele fica chocado com os extremos de miséria, sendo que ambos foram criados por ele. O mais afluente e o mais miserável da raça humana são encontrados nos países chamados de civilizados.

Para entender o que deve ser o estado da sociedade, é necessário ter alguma noção do estado natural e primitivo do homem, tal como ele é hoje em dia entre os índios da América do Norte. Não há naquela sociedade nenhum daqueles espetáculos de miséria humana que a pobreza e a necessidade apresentam aos nossos olhos em todas as cidades e ruas da Europa.

A pobreza é, portanto, uma coisa criada por aquilo que se chama de vida civilizada. Ela não existe em estado natural. Por outro lado, o estado natural não possui aquelas vantagens que provêm da agricultura, das artes, da ciência e das manufaturas.

A vida de um índio são férias permanentes, se comparada à dos pobres da Europa. Por outro lado, parece ser abjeta se comparada à dos ricos. Portanto a civilização, ou aquilo que se chama de civilização, tem operado de duas maneiras: tornou uma parte da sociedade mais rica e a outra mais pobre do que cada uma delas teria se tornado em um estado natural.

Sempre é possível ir do estado natural para o civilizado, mas nunca é possível ir do estado civilizado para o estado natural. O motivo para isso é que o homem em um estado natural, subsistindo por meio da caça, exige uma extensão de terra dez vezes maior para explorar a fim de obter o seu sustento do que aquela que seria necessária em um estado civilizado, no qual a terra é cultivada.

Portanto, quando um país se torna populoso por meio dos recursos adicionais do cultivo, das artes e ciências, há uma necessidade de preservar as coisas nesse estado, pois sem ele não pode haver sustento para mais do que, talvez, uma décima parte de seus habitantes. Por conseguinte, o que deve ser feito agora é remediar os males e preservar os benefícios da sociedade decorrentes da passagem do estado natural para aquele chamado de estado civilizado.

Assim sendo, o primeiro princípio de civilização deveria ter sido, e ainda deve ser, o de que a condição de toda pessoa nascida no mundo, depois de ter início um estado de civilização, não deverá ser pior do que seria se ela tivesse nascido antes daquele período.

Mas o fato é que a condição de milhões de pessoas, em todos os países da Europa, é muito pior do que se elas tivessem nascido antes do início da civilização, ou se tivessem nascido entre os índios da América do Norte nos dias atuais. Mostrarei como se deu este fato.

Não se pode negar que a terra, em seu estado natural, não cultivado, era e teria continuado a ser sempre propriedade comum da raça humana. Naquele estado todo homem teria nascido com direito à propriedade. Ele teria sido um coproprietário vitalício, juntamente com o resto [da humanidade], do solo e de todos os seus produtos naturais, vegetais e animais.

Mas a terra em seu estado natural, como já foi dito, é capaz de sustentar apenas um pequeno número de seus habitantes, em comparação com o que ela é capaz de sustentar em estado cultivado. E como é impossível separar da terra as benfeitorias proporcionadas pelo seu cultivo, o conceito de propriedade fundiária surgiu dessa conexão inseparável. Entretanto é verdade que somente o valor das benfeitorias, e não a terra em si, é propriedade individual.

Portanto, todo proprietário de terras cultivadas deve à comunidade um aluguel de solo [ground-rent] (pois não conheço nenhum termo melhor para expressar esta ideia) pela terra que detém; e é esse aluguel de solo que deve compor o fundo proposto neste plano.

Pode-se deduzir, tanto da natureza das coisas quanto de todas as histórias que nos foram transmitidas, que a ideia de propriedade fundiária teve início com o cultivo e que não existia tal coisa antes daquela época. Ela não poderia existir no estágio primitivo do homem, o de caçador. Não existia no seu segundo estágio, o de pastores: nem Abraão, nem Isaac, nem Jacó, nem Jó, desde que se possa dar crédito à história da Bíblia em coisas prováveis, eram proprietários de terra.

Como sempre se conta, a propriedade deles consistia em rebanhos que viajavam com eles de um lugar para outro. Os conflitos frequentes naquela época em torno do uso de um poço nas terras secas da Arábia, onde aqueles povos viviam, também demonstram que não existia a propriedade de terras. Não se admitia que a terra pudesse ser reivindicada como propriedade.

Não poderia haver propriedade fundiária originalmente. A Terra não foi feita pelo homem, e, embora possuísse um direito natural de ocupá-la, ele não tinha o direito de delimitar como sua propriedade perpétua qualquer parte dela. Tampouco o Criador da Terra abriu um escritório imobiliário onde deveriam ser emitidos os primeiros títulos de posse. De onde então surgiu a ideia de propriedade fundiária? Respondo, como o fiz anteriormente, que, quando teve início o cultivo, a ideia de propriedade da terra surgiu com ele da impossibilidade de separar da terra as benfeitorias trazidas pelo seu cultivo.

Naquela época, o valor das benfeitorias era tão superior ao da terra nua que chegava a absorvê-la, até que, por fim, o direito comum de todos confundiu-se com o direito individual ao cultivo. Porém há espécies distintas de direitos, e sempre haverá enquanto a Terra existir.

É somente investigando as coisas até as suas origens que podemos obter noções justas a respeito delas, e é obtendo tais noções que descobrimos a fronteira que divide o certo do errado e ensina cada homem a conhecer a si mesmo. Dei a este tratado o título de ‘Justiça Agrária’ para distingui-lo de ‘Direito Agrário’.

Nada poderia ser mais injusto do que Direito Agrário em um país aperfeiçoado pelo cultivo, pois embora todo homem, como habitante da Terra, seja coproprietário dela em seu estado natural, isso não significa que ele seja coproprietário da terra cultivada. O valor agregado pelo cultivo, depois que o sistema foi aceito, tornou-se propriedade daqueles que o realizaram, que o herdaram ou que o compraram. Originalmente ele não tinha dono. Portanto, enquanto advogo o direito e me interesso pelo caso de todos aqueles que foram excluídos da sua herança natural por meio da introdução do sistema de propriedade fundiária, defendo da mesma forma o direito do proprietário à parte que lhe pertence.

O cultivo é, no mínimo, um dos maiores progressos naturais já feitos pela invenção humana. Ele decuplicou o valor da Terra criada, mas o monopólio fundiário que surgiu com ele produziu o maior dos males. Ele expropriou mais da metade dos habitantes de cada nação de sua herança natural, sem conceder-lhes, como deveria ter sido feito, uma indenização por essa perda, criando assim uma espécie de miséria que antes não existia.

Ao advogar o caso das pessoas expropriadas dessa maneira, é um direito e não uma caridade que estou pleiteando. Mas é o tipo de direito que, tendo sido negligenciado a princípio, não poderia ter sido alegado mais tarde, até que os céus tivessem aberto o caminho por meio de uma revolução no sistema de governo. Vamos então honrar as revoluções por justiça e propagar seus princípios por meio de bênçãos.

Tendo assim aberto o mérito do caso em poucas palavras, procederei agora ao plano que tenho a propor, que é:

Criar um fundo nacional, do qual deverá ser paga a toda pessoa, ao atingir a idade de vinte e um anos, a quantia de quinze libras esterlinas, como uma compensação parcial pela perda de sua herança natural resultante da implantação do sistema de propriedade fundiária.

E também a quantia de dez libras por ano, em caráter vitalício, para toda pessoa que tenha atualmente a idade de cinquenta anos e para todas as demais quando atingirem essa idade.

Paine, Thomas. Justiça Agrária. pp. 3-6. O Texto completo pode ser encontrado aqui.