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Argumento do violinista de Jarvis Thomson

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O texto abaixo foi retirado do livro Ética Prática, por Peter Singer.

O último dos três argumentos que procuram justificar o aborto sem negar que o feto seja um ser humano inocente é o de que a mulher tem o direito de escolher o que acontece ao seu próprio corpo.

Este argumento tornou-se proeminente com a ascensão do movimento de libertação da mulher e foi elaborado por filósofos americanos simpatizantes do feminismo. Um argumento influente foi apresentado por Judith Jarvis Thomson por meio de uma analogia engenhosa.

Imaginemos, diz ela, que acordamos uma manhã e descobrimos que estamos numa cama de hospital, ligados de uma maneira qualquer a um homem inconsciente deitado numa cama ao lado. Dizem-nos que esse homem é um famoso violinista com uma doença renal. A única forma de ele sobreviver é ligar o seu sistema circulatório ao sistema de outra pessoa com o mesmo grupo sanguíneo e nós somos a única pessoa com o sangue adequado. De modo que uma sociedade de melômanos nos raptou, mandou realizar a operação de ligação e aqui estamos. Como nos encontramos agora num hospital respeitável, poderíamos ordenar a um médico que nos desligasse do violinista; mas, nesse caso, o violinista morreria pela certa. Por outro lado, se nos mantivermos ligados por apenas (apenas?) nove meses, o violinista terá recuperado e podemos então desligar-nos sem o pôr em perigo. Thomson pensa que, se nos encontrássemos nesta dificuldade inesperada, não teríamos a obrigação moral de permitir que o violinista usasse os nossos rins durante nove meses. Poderia ser generoso ou simpático da nossa parte, mas, segundo Thomson, isso é completamente diferente de dizer que estaríamos a fazer um mal se assim não procedêssemos.

Note-se que a conclusão de Thomson não depende de negar que o violinista é um ser humano inocente, com o mesmo direito à vida que qualquer outro ser humano inocente. Pelo contrário, Thomson afirma de fato que o violinista tem direito à vida – mas ter direito à vida não implica, prossegue Thomson, o direito de usar o corpo de outra pessoa, mesmo que sem essa utilização uma pessoa morra. A analogia com a gravidez, em especial com a gravidez resultante de violação, é óbvia. Uma mulher grávida na sequência de uma violação encontra-se, sem que tenha feito uma escolha, ligada a um feto de uma forma comparável à pessoa ligada ao violinista. É verdade que uma mulher grávida não tem normalmente de passar nove meses numa cama, mas os adversários do aborto não encarariam este pormenor como uma justificação suficiente para o aborto.

Oferecer um bebé recém-nascido para adoção pode ser mais difícil, psicologicamente, que separar-se do violinista no final da sua doença; mas, só por si, este fato não parece uma razão suficiente para matar o feto. Aceitando, para fins de argumentação, que o feto conta como um ser humano pleno, fazer um aborto quando o feto não é viável tem o mesmo significado moral que nos desligarmos do violinista. Assim, se concordarmos com Thomson em que não seria um mal no desligarmos do violinista, temos de aceitar também que, qualquer que seja o estatuto do feto, o aborto não é um mal – pelo menos quando a gravidez resulta de estupro.

O argumento de Thomson pode provavelmente alargar-se a casos que ultrapassam o estupro. Suponhamos que nos vemos ligados ao violinista, não porque fomos raptados por amantes da música, mas porque tínhamos a intenção de ir ao hospital visitar um amigo doente e, quando entramos no elevador, apertamos inadvertidamente no botão errado e fomos parar a uma seção do hospital visitada normalmente apenas por aqueles que se ofereceram como voluntários para serem ligados a pacientes que de outra forma não sobreviveriam. Uma equipe de médicos à espera do voluntário seguinte pensou que este tinha chegado, aplicou-nos a anestesia e ligou-nos. Se o argumento de Thomson era sólido no caso do rapto, provavelmente também o é neste caso, uma vez que nove meses involuntários a apoiar outra pessoa é um preço elevado a pagar por ignorância ou descuido. Deste modo, o argumento podia aplicar-se não só aos casos de violação, mas a um número muito maior de mulheres que engravidam devido à ignorância, descuido ou falha dos métodos de contracepção.