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O dever de investigar segundo William Clifford

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Introdução

O trecho de texto abaixo é de “A Ética da Crença”, um ensaio influente escrito por William Kingdon Clifford. Neste trabalho, ele explora a responsabilidade moral dos indivíduos em basear suas crenças em evidências adequadas antes de aceitá-las como verdadeiras. Ele argumenta que é errado, tanto do ponto de vista ético quanto epistemológico, manter crenças sem justificação adequada, independentemente de tais crenças se revelarem verdadeiras ou falsas.

No ensaio, o filósofo utiliza a parábola de um armador que, apesar das suspeitas sobre a condição de seu navio, escolhe acreditar que ele é seguro. O navio eventualmente naufraga, demonstrando tragicamente as consequências mortais da negligência do armador em verificar a veracidade de suas crenças. Clifford argumenta que o armador é moralmente culpado não apenas pelo resultado, mas por sua falha em buscar a verdade antes de agir baseado em sua crença.

Clifford estende esse princípio para uma ampla gama de situações, incluindo o caso fictício de acusadores que formam convicções sem investigação adequada. Ele insiste que as pessoas são responsáveis não apenas pelas ações que suas crenças instigam, mas também pela origem dessas crenças. Ao adotar crenças sem razões suficientes, um indivíduo comete um ato moralmente repreensível, pois tais crenças podem levar a consequências prejudiciais para os outros.

Texto de Clifford

Um armador preparava-se para enviar para o mar um navio com emigrantes. Sabia que o navio estava velho e tinha defeitos de construção; que conhecera já muitos mares e climas e teve de ser reparado muito mais de uma vez. Alguém sugeriu ao armador que o navio talvez não estivesse em condições de navegar. Estas dúvidas pesavam-lhe na consciência e deixavam-no infeliz; pensou que talvez devesse mandar inspecionar e renovar completamente o navio, embora isto ficasse provavelmente bastante caro. Antes de o navio zarpar, contudo, o armador conseguiu deixar para trás estes pensamentos melancólicos. Disse para consigo que o navio enfrentara com êxito tantas viagens e resistira a tantas tempestades que não havia razão para supor que não regressaria ileso também desta viagem. O armador confiaria na providência, que seguramente não deixaria de proteger todas aquelas infelizes famílias que abandonavam a pátria em busca de uma vida melhor noutras paragens. Silenciaria todas as dúvidas mesquinhas acerca da honestidade dos construtores e dos empreiteiros. Assim, alcançou uma certeza sincera e confortável de que o seu navio era completamente seguro e estava em condições de navegar; viu-o partir com despreocupação e desejos caridosos de que os exilados fossem bem-sucedidos no novo e estranho lar que os esperava; e recebeu o dinheiro do seguro quando o navio se afundou em pleno mar sem deixar rasto.

O que diremos do armador? Seguramente, que é muitíssimo culpado pela morte daqueles homens. Admitindo-se que acreditava sinceramente no bom estado do seu navio, a sinceridade da sua convicção, porém, não lhe pode valer de maneira alguma, porque não tinha o direito de acreditar com base nos indícios de que dispunha. Não adquiriu a sua crença por mérito honesto, através da investigação paciente, mas silenciando as suas dúvidas. E embora no final a sua certeza sobre o assunto fosse porventura tão grande que não era capaz de pensar de outra maneira, temos de o considerar responsável pelo sucedido, na medida em que se colocou deliberada e voluntariamente naquele estado de espírito.

Alteremos um pouco a história e suponhamos que o navio não estava, afinal, em mau estado; suponhamos que fez a viagem em segurança, e muitas outras viagens após aquela. Será que isso diminui a culpa do seu proprietário? Nem um pouco. Quando se pratica uma ação uma vez, esta é correta ou incorreta para sempre; nenhuma falha acidental das suas boas ou más consequências pode alterar tal fato. O homem não seria inocente; apenas não teria sido descoberto. A questão do correto e do incorreto tem que ver com a origem da crença do armador, e não com o seu conteúdo; não é a crença que conta, mas o modo como a adotou; não se trata de a crença ser afinal verdadeira ou falsa, mas de o armador ter ou não o direito a acreditar com base nos indícios de que dispunha.

Era uma vez uma ilha onde alguns dos habitantes seguiam uma religião que não pregava a doutrina do pecado original nem a doutrina do castigo eterno. Espalhou-se a suspeita de que os seguidores desta religião se tinham servido de meios desonestos para ensinar as suas doutrinas às crianças. Acusaram-nos de violar as leis do país de maneira a afastar as crianças da vigilância de quem tinha a sua custódia natural e legal; e até de as roubar e manter escondidas dos amigos e familiares. Algumas pessoas formaram uma associação com o objetivo de provocar a agitação do público acerca deste assunto. Publicaram acusações graves contra cidadãos individuais do mais elevado estatuto e reputação, e fizeram tudo o que estava ao seu alcance para lesar estes cidadãos no exercício das suas profissões. Fizeram tamanho barulho que foi nomeada uma comissão para investigar os fatos; mas após a comissão ter averiguado cuidadosamente todos os indícios que se podiam obter, parecia que os acusados estavam inocentes. Não só foram acusados com base em indícios insuficientes, como os indícios da sua inocência eram tais que os agitadores os podiam ter facilmente obtido, se tivessem procurado fazer uma investigação imparcial. Após estas revelações, os habitantes daquele país passaram a encarar os membros da associação agitadora não só como pessoas em cujo discernimento não se devia confiar, mas também como indivíduos que não mais podiam considerar-se honestos. Pois embora acreditassem sincera e diligentemente nas acusações que fizeram, não tinham todavia o direito de acreditar com base nos indícios de que dispunham. As suas convicções sinceras, em vez de merecidas pela investigação paciente, foram roubadas, dando ouvidos à voz do preconceito e da paixão.

Introduzamos uma variação também neste caso e suponhamos, deixando o resto na mesma, que uma investigação ainda mais meticulosa provava que os acusados eram realmente culpados. Faria isto diferença alguma para a culpa dos acusadores? Evidentemente que não; a questão não é a de a sua crença ser ou não verdadeira, mas a de a terem ou não sustentado sem razões adequadas. Sem dúvida diriam: “agora veem que afinal de contas tínhamos razão; talvez para a próxima acreditem em nós.” E talvez acreditassem neles, mas não se tornariam homens honestos por causa disso. Não estariam inocentes, apenas não teriam sido descobertos. Se cada um deles, sem exceção, decidisse examinar-se em seu foro íntimo, saberia que tinha adquirido e acalentado uma crença, quando não tinha o direito de acreditar com base nos indícios de que dispunha; e assim saberia ter feito uma coisa incorreta.

Questões para estudo do texto

As questões abaixo são para provocar uma reflexão sobre nossos atos de crer, levando em consideração as ideias de Clifford. De maneira geral, até que ponto não somos semelhantes ao armador e aos agitadores?

  1. Faça uma lista de cinco crenças que você tem sobre qualquer assunto.
  2. Em relação à qual delas considera ter feito uma investigação imparcial e abrangente, comparando evidência a favor e contra?
  3. Você pensa que tem o direito de acreditar nisso que acredita, com base nos indícios de que dispõe? Ou algumas de suas crenças se assemelham à crença do armador em relação ao navio?

Referência

CLIFFORD, W. F. A Ética da Crença. In: MURCHO, D. (ed.). A Ética da Crença. Lisboa:
Editorial Bizâncio, 2010, p. 97-136.