A moral provisória de Descartes
Introdução
O trecho abaixo é do “Discurso do Método”, uma das obras filosóficas mais influentes de René Descartes, onde ele descreve o processo de estabelecimento de uma base sólida para o conhecimento verdadeiro. Neste segmento específico, o filósofo discute a necessidade de uma “moral provisória” que ele adotou enquanto reconstruía sua base de conhecimento para não ficar paralisado pela dúvida em suas ações diárias.
Descartes reconhece que, antes de poder reconstruir completamente seu sistema de crenças através do método cético, ele precisa de um conjunto prático de princípios para guiar seu comportamento. Assim, ele formula uma moral temporária composta por três máximas principais: (1) obedecer às leis e costumes do seu país, respeitando a religião em que foi criado; (2) ser o mais firme e resoluto possível em suas ações, uma vez que se comprometa com uma decisão; e (3) esforçar-se para superar a si mesmo, aceitando as coisas que estão fora de seu controle e desejando apenas o que é alcançável.
Texto de Descartes
E enfim, como não basta, antes de começar a reconstruir a casa onde se mora, fazê-la demolir ou se ocupar a própria pessoa da arquitetura, além de ter cuidadosamente traçado o projeto, mas é preciso também arranjar outra onde comodamente se alojar enquanto durarem os trabalhos, assim eu, para não ficar em absoluto hesitante nas minhas ações enquanto a razão me obrigasse a sê-lo nos meus juízos e para não deixar de viver desde então do modo mais feliz possível, criei para mim uma moral provisória, consistindo somente de três ou quatro máximas, que gostaria de vos expor.
A primeira era obedecer às leis e costumes do meu país, respeitando sempre a religião na qual Deus me deu a graça de ser educado desde a infância e me conduzindo em todas as outras coisas segundo as opiniões mais moderadas e mais afastadas do excesso que fossem comumente aceitas na prática pelos mais sensatos dentre aqueles com quem teria que viver. Pois, começando desde então por não considerar minhas próprias opiniões como coisa alguma, pois queria recolocá-las todas em questão, estava seguro de não poder seguir outras melhores que as dos mais sensatos. E ainda que haja talvez gente tão sensata entre os persas ou chineses como entre nós, parecia-me que o mais útil era me comportar segundo aqueles com os quais teria que viver; e que, para saber quais eram verdadeiramente suas opiniões, eu deveria antes prestar atenção no que praticavam do que no que diziam; não apenas porque, com a corrupção dos nossos costumes, haja pouca gente disposta a dizer tudo aquilo em que acredita, mas também porque vários inclusive o ignoram; pois como a ação do pensamento pela qual se acredita numa coisa é diferente daquela pela qual se sabe que se acredita nessa coisa, uma existe com frequência sem a outra. E entre várias opiniões igualmente aceitas eu só escolhia as mais moderadas; tanto porque são sempre as mais cômodas na prática e possivelmente as melhores, costumando todo excesso ser ruim, como também para me desviar menos do verdadeiro caminho, caso falhasse, do que se, escolhendo um dos extremos, devesse ter seguido o outro. E, particularmente, colocava entre os excessos todas as promessas pelas quais se cerceia a liberdade de alguma coisa. Não que desaprovasse as leis que para remediar a inconstância dos espíritos fracos permitem, quando se tem um bom propósito ou mesmo, para garantia do comércio, um propósito apenas indiferente, que se façam votos ou contratos que obrigam a perseverar nele; mas por não ver no mundo coisa alguma que permanecesse sempre no mesmo estado e, no meu caso particular, prometer aperfeiçoar cada vez mais meus juízos e não em absoluto piorá-los, pensaria estar cometendo uma grande falta contra o bom senso se, pelo fato de antes aprovar alguma coisa, fosse obrigado a tomá-la como boa mesmo depois que talvez tivesse deixado de sê-lo ou quando não mais a considerasse assim.
Minha segunda máxima era a de ser o mais firme e o mais decidido possível em minhas ações e de seguir as opiniões as mais duvidosas, uma vez me tivesse resolvido por elas, com a mesma constância que o faria se fossem muito seguras, imitando nisso os viajantes que, vendo-se perdidos numa floresta, não devem ficar dando voltas, a errar de um lado para o outro, e muito menos parar num lugar, mas caminhar sempre o mais reto possível numa mesma direção e não mudá-la de modo algum por motivos frágeis, mesmo que talvez de início apenas o acaso os tenha levado a escolhê-la: porque assim, se não vão exatamente aonde desejam, chegarão pelo menos afinal a algum lugar onde provavelmente estarão melhor que no meio de uma floresta. De forma que, não aceitando comumente as ações da vida nenhuma demora, é verdade bem certa que, se não estiver em nosso poder discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis; e mesmo, ainda que não notemos mais probabilidade numas do que noutras, devemos contudo nos decidir por algumas e considerá-las depois não mais como duvidosas, uma vez que dizem respeito à prática, mas como muito verdadeiras e certas, pois assim se considera a razão que nos fez optar por elas. E isso foi desde então capaz de me livrar de todos os remorsos e arrependimentos que costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e vacilantes que se deixam levar com inconstância a praticar, como boas, coisas que julgam mais tarde serem más.
Minha terceira máxima era tratar sempre de vencer a mim mesmo e não ao destino, mudando antes meus desejos que a ordem do mundo, e no geral me acostumar a crer que nada está inteiramente em nosso poder além dos nossos pensamentos; de modo que depois de ter dado o melhor de nós em coisas que nos são exteriores, tudo o que deixamos de conseguir é, no que nos diz respeito, absolutamente impossível. E isso já me parecia suficiente para impedir que desejasse no futuro nada que não conseguisse e para ficar dessa forma contente. Pois não se aplicando naturalmente nossa vontade a desejar senão as coisas que nosso entendimento lhe apresenta de alguma forma como possíveis, é certo que, se consideramos todos os bens exteriores a nós como igualmente distantes do nosso poder, não lamentaremos a falta daqueles que parecem devidos ao nosso nascimento, quando formos privados deles sem culpa nossa, mais do que lamentamos não possuir os reinos da China ou do México; e fazendo da necessidade virtude, como se diz, não desejaremos ter saúde estando doentes ou ser livres estando presos, mais do que desejamos atualmente ter corpos de uma matéria tão pouco corruptível quanto o diamante ou asas para voar como os pássaros. Mas admito que é necessário um longo exercício e uma meditação persistente para se acostumar a encarar todas as coisas sob esse ângulo; e creio que era principalmente nisso que consistia o segredo desses filósofos que puderam outrora abstrair-se do império da fortuna e, apesar das dores e da pobreza, disputar felicidade aos seus deuses. Pois, ocupando-se incessantemente em considerar os limites que lhes eram prescritos pela natureza, persuadiam-se de modo tão perfeito que nada estava em seu poder além dos próprios pensamentos que só isso era suficiente para impedi-los de ter qualquer afeição por outras coisas; e dispunham deles de forma tão absoluta que tinham nisso alguma razão de se considerar mais ricos, mais poderosos, mais livres e mais felizes que quaisquer dos outros homens que, não tendo essa filosofia, por mais favorecidos que sejam pela natureza e a fortuna, jamais dispõem assim de tudo o que querem.
Por fim, para conclusão dessa moral, decidi fazer um exame das diversas ocupações que têm os homens nesta vida e tentar escolher a melhor; e sem pretender dizer nada das ocupações dos outros, pensei que não podia fazer melhor que continuar naquela mesma em que estava, isto é, empregar toda a minha vida a cultivar a razão e avançar o máximo que pudesse no conhecimento da verdade, seguindo o método que me havia prescrito.
Referência
Descartes, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 2003.