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A crítica ao dualismo mente-corpo de Alfred Ayer

- 5 min leitura

Introdução

Alfred Jules Ayer, em seu artigo “As bases físicas da mente”, discute a complexa relação entre os processos mentais e físicos. Ayer desafia a clássica dicotomia cartesiana entre mente e corpo, questionando como processos puramente físicos no cérebro podem dar origem a experiências subjetivas, como pensamentos e emoções. Ele explora a dificuldade de conceituar como padrões de impulsos nervosos podem formar ideias ou como pensamentos podem influenciar a atividade física cerebral.

Ayer argumenta que o problema não reside na falta de dados empíricos sobre o cérebro, mas em um erro lógico fundamental na maneira como concebemos a mente e a matéria como entidades distintas. Sugerindo que a mente e o corpo são dois modos de descrever o mesmo fenômeno sob diferentes perspectivas, ele propõe que as correlações entre eventos mentais e físicos não são misteriosas, mas são simplesmente maneiras de relacionar diferentes tipos de observações. Ele conclui que os problemas filosóficos surgem não da relação entre mente e matéria, mas de nossos conceitos e categorizações, propondo uma reavaliação de como interpretamos e relacionamos experiências observadas.

Texto de Ayer

(1) Os cientistas que falaram neste programa mostraram de forma bastante completa e convincente como os vários   processos mentais — pensar, sentir, perceber, lembrar   dependem, do ponto de vista causal, de processos que ocorrem no cérebro. Mas, para ao menos alguns deles, o caráter dessa conexão ainda parece misterioso. Por isso, […] o professor Adrian […] diz que “a parte da imagem do cérebro que pode continuar faltando para sempre é aquela que deveria explicar como um padrão específico de impulsos nervosos consegue formar uma ideia; ou, olhando a questão pelo ângulo oposto, como um pensamento consegue decidir que células nervosas deverão entrar em ação .

(2) Se este é um problema genuíno, não se pode perceber com facilidade a razão pela qual informações adicionais sobre o cérebro conseguiriam resolvê-lo. Porque, independentemente de quanto ampliemos a imagem do cérebro, ela continuará a ser a imagem de algo físico, e trata-se justamente da questão sobre como algo físico consegue interagir com algo que não é físico, aquela questão que, supostamente, nos traz dificuldade. […] Parece, realmente, que alguns dos palestrantes anteriores alimentavam a esperança de descobrir algo capaz de ser descrito como o local exato da mente; como se fosse possível imaginar a mente e o cérebro se encontrando em algum ponto do espaço ou se transformando um no outro gradualmente: mas, para mim, essa não é nem mesmo uma hipótese compreensível. O que significaria chegar a esse ponto de junção? Que sinais permitiriam reconhecer que se encontrou esse ponto? Descartes deparou com o mesmo problema e, sugerindo que a mente e o corpo unem-se na glândula pineal, nunca explicou como se poderia testar essa conjectura. O motivo pelo qual Descartes teve esse problema – e pelo qual nós ainda o temos – é que a matéria e a mente foram concebidas por ele, desde o princípio, como ordens distintas do ser; era como se houvesse dois mundos separados, de forma que cada acontecimento teria de pertencer a um deles, mas nunca aos dois. No entanto, partindo dessas premissas, deduz-se necessariamente que não pode haver nenhuma ponte ou junção; pois do que seria feita essa ponte? Qualquer evento que se descobrisse teria de ficar em um lado ou no outro. De forma que, se há uma dificuldade aqui, essa não se deve à escassez de informações factuais, mas a um erro de lógica. Talvez esteja errada toda essa forma de conceber a diferença entre a mente e a matéria. Em resumo, trata-se aqui de um problema não científico, mas filosófico.

(3) Avaliemos, então, o que significa dizer que um padrão específico de impulsos nervosos “produz” uma ideia ou que “um pensamento determina” que células nervosas devem entrar em ação. Sobre que fatos se baseiam tais pressuposições? Os fatos consistem em que o fisiologista realiza certas observações e essas observações encaixam-se em categorias diferentes. De um lado, há as observações que o levam a contar sua história sobre as células nervosas e os impulsos elétricos. Ou seja, essa história apresenta uma interpretação das observações em foco. De outro lado, há as observações que interpreta para afirmar que o sujeito de seu experimento encontra-se em um estado “mental” assim ou assado, que ele está pensando ou está resolvendo-se sobre realizar uma ação ou que está sentindo alguma sensação ou o que quer que seja. Descobre-se, então, que, nesse caso, há a possibilidade de relacionar entre si os dois tipos de observação; que, independentemente do momento em que se faça uma observação do primeiro tipo, há bons motivos para acreditar que também seja possível realizar uma observação do segundo tipo. […] Parece-me que, quando se assevera o fato de os dois eventos em questão — o mental e o físico — estarem conectados do ponto de vista causal, de o padrão de impulsos nervosos produzir a sensação ou de o pensamento “decidir” quais células nervosas deverão entrar em operação, tudo o que se quer dizer, ou que se pode dizer de forma adequada, é que esses dois grupos de observação mantêm correlações segundo a maneira descrita por mim. Mas, se a situação resume-se a isso, qual a dificuldade? Nada há especialmente misterioso sobre o fato de dois grupos diferentes de observação se mostrarem correlatos; que, dadas as condições apropriadas, esses dois grupos costumam acompanhar um ao outro. Pode-se argumentar que esse fato padece de uma explicação; mas tal explicação poderia ser apenas uma teoria a partir da qual o fato da correlação acabaria por ser deduzido. E, se não for apenas uma mera e nova descrição dos fatos que pretendia explicar, a teoria serviria apenas para encaixá-los em um contexto mais amplo. Aprenderíamos com isso que não apenas essas observações estariam correlacionadas, mas que outros tipos de observação estariam relacionados com elas. Perguntar por que algo ocorre não equivale a perguntar como algo ocorre, mas a perguntar quais outros elementos se associam com aquilo. Após os fatos terem sido descritos em sua inteireza, não há mais mistério.

(4) Se parece haver um mistério neste caso, isso se deve  ao fato de sermos iludidos por nossos sistemas conceituais; não pelos fatos em si, mas pelas imagens que usamos para interpretar os fatos. […] A imagem com a qual deparamos fala de mensagens viajando pelo cérebro, atingindo uma entidade misteriosa chamada mente, recebendo ordens dela e, depois, regressando a sua viagem. Mas, já que a mente não ocupa um lugar no espaço – por definição, a mente não é algo capaz de ocupar um lugar no espaço – não faz sentido, literalmente, falar sobre sinais físicos chegando até ela […]. Para ser conciso, as duas histórias não se misturam. […] Mas afirmar que as duas histórias não se misturam não significa afirmar que uma delas seria descartável. Cada uma representa a interpretação de um certo fenômeno, e as duas estão ligadas pelo fato de que, em certas condições, quando uma delas for verdadeira, a outra também o será.

(5) Sendo assim, minha conclusão é que a mente e o corpo não devem ser concebidos como duas entidades diferentes entre as quais devemos construir, ou encontrar, algum tipo de ponte anfíbia. Falar sobre a mente e falar sobre o corpo são formas diferentes de classificar e interpretar as experiências de alguém. Não estou afirmando que esse procedimento não dá origem a problemas filosóficos sérios, problemas do tipo: como devemos analisar as afirmações a respeito do comportamento observável das pessoas? Mas, uma vez libertados da falácia cartesiana de ver a mente como uma substância imaterial, não acredito que a descoberta das conexões causais entre o que optamos por descrever respectivamente como ocorrências mentais e físicas implique algo em vista do qual devamos ficar perplexos.

Referência

Trecho do artigo The Physical Basis of Mind, de Alfred Jules Ayer. Retirado de: Fischer, Alec. A lógica dos verdadeiros argumentos. São Paulo: Novo Conceito Editora, 2008, pp. 147-150.