Crítica de Russell ao argumento da primeira causa
Introdução
O trecho apresentado é de “Por que não sou cristão e outros ensaios a respeito de religião e assuntos afins”, uma coletânea de ensaios do filósofo britânico Bertrand Russell. Neste específico argumento, Russell aborda a Causa Primordial, uma concepção filosófica tradicionalmente usada para justificar a existência de Deus.
Russell critica a ideia de que tudo no universo deve ter uma causa e, por conseguinte, deve haver uma “Causa Primordial” que é Deus. Ele desafia essa noção ao questionar por que, se tudo deve ter uma causa, Deus seria uma exceção. Essa reflexão foi inspirada pela leitura da autobiografia de John Stuart Mill, que questionava: “Quem fez Deus?”. Para Russell, isso revelou a falácia do argumento da Causa Primordial.
Ele prossegue argumentando contra a necessidade de um início para o universo, sugerindo que a ideia de um começo é mais uma limitação da imaginação humana do que uma necessidade ontológica. Russell explora a possibilidade de o universo ter sempre existido ou ter surgido sem uma causa, desafiando a premissa tradicional de que todo efeito deve ter uma causa.
Texto de Russell
Talvez o mais simples e mais fácil de entender seja o argumento da Causa Primordial. (Defende-se que tudo o que vemos neste mundo tem uma causa e, à medida que retrocedermos cada vez mais na corrente de causas, chegaremos obrigatoriamente à Causa Primordial, e essa Causa Primordial recebe o nome de Deus.) Tal argumento, suponho, não tem muito peso nos dias de hoje, porque, em primeiro lugar, já não é mais o que era. Os filósofos e os homens de ciência têm estudado muito a causa, e ela já não tem nem de longe a vitalidade que tinha; mas, fora isso, dá para ver que o argumento de que obrigatoriamente existe uma Causa Primordial não pode ter nenhuma validade. Posso dizer que, quando eu era jovem e debatia essas questões com muita seriedade em minha mente, durante muito tempo aceitei o argumento da Causa Primordial, até o dia em que, aos dezoito anos, li a autobiografia de John Stuart Mill e lá encontrei a seguinte frase: “Meu pai me ensinou que a pergunta ‘Quem me fez?’ não pode ser respondida, já que imediatamente sugere a pergunta seguinte ‘Quem fez Deus?’”. Essa frase extremamente simples me mostrou, como ainda penso, que o argumento da Causa Primordial é uma falácia. Se tudo precisa ter uma causa, então também Deus deve ter uma causa. Se é possível que exista qualquer coisa sem causa, isso tanto pode ser o mundo quanto Deus, de modo que não pode haver validação nesse argumento. Trata-se exatamente da mesma natureza da visão hinduísta de que o mundo repousava sobre um elefante, e que o elefante repousava sobre uma tartaruga; e quando alguém perguntava “Mas e a tartaruga?”, o indiano respondia: “Que tal mudarmos de assunto?”. O argumento, de fato, não é melhor do que isso.
Não há razão por que o mundo não possa ter passado a existir sem causa nenhuma; tampouco, por outro lado, existe qualquer razão que o impeça de ter sempre existido. Não há razão para supor que o mundo teve alguma espécie de início. A ideia de que as coisas precisam obrigatoriamente ter um início na verdade se deve à pobreza da nossa imaginação. Portanto, talvez eu não precise mais perder tempo com o argumento relativo à Causa Primordial.
Referência
Bertrand Russell. Por que não sou cristão e outros ensaios a respeito de religião e assuntos afins. Porto Alegre: L&PM, 2013.