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Trecho da República de Platão com o mito da caverna

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Introdução

No “Mito da Caverna”, apresentado por Platão em “A República”, Sócrates propõe uma alegoria para discutir a realidade percebida e o conhecimento verdadeiro. Imagina pessoas acorrentadas em uma caverna desde a infância, limitadas a ver somente as sombras projetadas em uma parede, criadas por objetos que passam diante de uma fogueira. Para elas, essas sombras são a realidade completa.

Sócrates então descreve o processo de libertação de um desses prisioneiros, que é forçado a confrontar a luz da fogueira e, posteriormente, a luz do sol no mundo exterior. Através dessa jornada, o libertado gradativamente reconhece as sombras como ilusões e aprende a aceitar a existência de uma realidade mais ampla e verdadeira. A alegoria serve para ilustrar o caminho árduo e muitas vezes resistido rumo ao conhecimento verdadeiro, destacando a importância da educação filosófica para o desenvolvimento de governantes justos na cidade ideal de Platão.

Texto de Platão

Depois disso, Sócrates inventou ainda outra comparação para esclarecer algumas questões sobre a importância da educação dos filósofos para serem os governantes da cidade justa.

Sócrates – Imaginemos que existam pessoas morando numa caverna. Pela entrada dessa caverna entra a luz vinda de uma fogueira situada sobre uma pequena elevação que existe na frente dela. Os seus habitantes estão lá dentro desde a infância, algemados por correntes nas pernas e no pescoço, de modo que não conseguem mover-se nem olhar para trás, e só podem ver o que ocorre à sua frente. Entre aquela fogueira e a entrada da caverna existe um caminho, ao longo do qual se ergue um pequeno muro, semelhante aos tapumes que os apresentadores de fantoches usam para exibir seus bonecos ao público.

Glauco – Estou vendo.

Sócrates – Imagina também que pelo caminho ao longo do muro passam pessoas transportando sobre a cabeça todos os tipos de objetos: estatuetas de figuras humanas e de animais, feitas de pedra, de madeira ou qualquer outro material. Como é natural essas pessoas passam conversando ao longo do muro.

Representação do mito da caverna

Glauco – Acho isso muito esquisito, assim como os prisioneiros que você inventou.

Sócrates – Pois eles parecem conosco. Mas continuemos com a nossa comparação. Naquela situação, você acha que os habitantes da caverna, a respeito de si mesmos e dos outros, consigam ver outra coisa além das sombras que o fogo projeta na parede ao fundo da caverna?

Glauco – Com a cabeça imobilizada por toda a vida, só podem ver as sombras!

Sócrates – E também com relação aos objetos transportados que ultrapassam a altura do muro?

Glauco – Exatamente a mesma coisa!

Sócrates – Se eles pudessem conversar entre si, não lhe parece que pensariam nomear de objetos reais as sombras que vissem?

Glauco – Certamente.

Sócrates – Além disso, se a caverna tivesse um eco, quando alguém falasse lá fora os prisioneiros pensariam que os sons fossem emitidos pelas sombras projetadas.

Glauco – Não resta a menor dúvida.

Sócrates – Portanto, os habitantes daquele lugar só poderiam pensar que a realidade seria as sombras dos objetos.

Glauco – É claro!

Sócrates – Imagine agora o que aconteceria se os habitantes fossem libertados das cadeias e curados da ignorância em que vivam. Se libertassem um dos prisioneiros e o forçassem a se levantar de repente, a olhar para trás, caminhar dentro da caverna e olhar para a luz, ao fazer isso ele sofreria e, ofuscado, não conseguiria ver os objetos dos quais só tinha visto as sombras. Que pensa você que ele diria se alguém afirmasse que tudo o que ele tinha visto até então não passava de sombra e que a partir de agora ele estaria mais perto da realidade e poderia ver os objetos mais reais? Não ficaria confuso se lhe mostrassem algum dos objetos transportados ao longo do muro e o obrigassem a dizer o que era? Você não acha que ele pensaria serem mais reais as sombras de antes do que os objetos de agora?

Glauco – Acho que sim.

Sócrates – E se o forçassem a encarar a própria luz? Você não acha que seus olhos doeriam e que, virando de costas, voltaria para junto das coisas que podia ver, e continuaria pensando que elas eram mais reais do que os objetos que lhe mostravam?

Glauco – Exatamente.

Sócrates – E se o arrastassem para fora da caverna, forçando-o a escalar a subida íngreme, e não o soltassem antes de alcançar a luz do Sol, não seria normal que ele ficasse aflito e irritado por ser arrastado daquele modo, e, chegando à luz do Sol, com os olhos ofuscados, nem conseguisse distinguir as coisas que lhe diriam ser verdadeiras?

Glauco – É certo que não conseguiria, pelo menos de súbito.

Sócrates – Precisaria habituar-se se quisesse ver as coisas que existem na região superior. No início veria melhor as sombras, em seguida, veria as imagens dos homens e dos objetos refletidas na água e, por última, conseguiria ver os próprios objetos. Depois disso, poderia contemplar o que há no céu durante a noite, olhando a luz das estrelas e da Lua, com muito mais facilidade do que se olhasse o Sol à luz do dia.

Glauco – Não poderia ser diferente.

Sócrates – penso que, finalmente, ele poderia olhar diretamente para o Sol e contemplar, não mais a sua imagem refletida na água ou em outra superfície, mas o próprio astro lá no céu, tal como ele é.

Glauco – Também penso assim.

Sócrates – A partir daí ele compreenderia que é o Sol que produz as estações e os anos e que governa todas as coisas no mundo visível, e que, de certo modo, é a causa de tudo o que ele tinha visto na caverna.

Glauco – Certamente chegaria a estas conclusões.

Sócrates – Você não acha que, quando ele se lembrasse da antiga habitação, dos conhecimentos que lá possuíra e dos antigos companheiros de prisão, ele se alegraria com a mudança e lamentaria a situação dos outros?

Glauco – Decerto que sim.

Sócrates – Suponhamos que os prisioneiros concedessem honras e elogios entre si, e atribuíssem prêmios a quem fosse mais rápido em distinguir os objetos que passavam, se lembrasse melhor a sequência em que eles costumavam aparecer e fosse mais hábil em predizer o que aconteceria. Você acha que o prisioneiro libertado sentiria saudades dessas distinções e teria inveja dos prisioneiros mais honrados e poderosos? Não lhe parece que ele preferiria estar a serviço de um pobre lavrador ou padecer tudo no mundo do que voltar às ilusões de antes e viver daquele modo?

Glauco – Suponho que ele preferiria sofrer qualquer coisa a viver daquela maneira.

Sócrates – Imagina ainda que o homem liberto descesse à caverna e voltasse ao seu antigo lugar: não ficaria temporariamente cego em meio às trevas ao voltar subitamente da luz do Sol?

Glauco – Com certeza.

Sócrates – E se, estando ainda ofuscado, tivesse de julgar aquelas sombras em competição, por acaso não provocaria risos nos prisioneiros que tivessem permanecido na caverna? Não diriam que a subida para o mundo superior lhe prejudicara a vista e que, portanto, não valia a pena tentar subir para lá? Você não acha que, se pudessem, os prisioneiros até matariam quem tentasse libertá-los e conduzi-los para cima?

Glauco – Certamente fariam isso.

Referência

PLATÃO. A República (adaptação de Marcelo Perine). São Paulo, Editora Scipione, 2002. p. 83-86.