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A homossexualidade na Grécia Antiga segundo Foucault

- 4 min leitura

Introdução

O trecho abaixo é extraído do livro “História da Sexualidade: O Uso dos Prazeres” de Michel Foucault, publicado pela editora Paz e Terra em 2014. Nesta obra, Foucault explora a complexidade das relações sexuais e a construção da sexualidade na Grécia Antiga, desafiando conceitos modernos como “homossexualidade” e “bissexualidade” para descrever práticas e experiências sexuais daquela época.

Foucault argumenta que os gregos não categorizavam atrações sexuais como exclusivamente homossexuais ou heterossexuais, mas consideravam mais relevante a capacidade de um indivíduo de controlar seus prazeres e desejos. A moralidade não estava na natureza do objeto de desejo, mas na moderação com que esse desejo era satisfeito. A distinção não era entre o amor por um sexo ou por outro, mas entre a temperança e a devassidão em todas as formas de atividade sexual.

O filósofo ressalta que, para os gregos, a atração não era dividida em categorias fixas baseadas no gênero do objeto de desejo, mas era vista como uma inclinação natural a achar beleza em jovens de ambos os sexos. Essa perspectiva difere significativamente das noções contemporâneas de orientação sexual e identidade.

Este texto é fundamental para quem estuda a história da sexualidade, oferecendo insights sobre como as práticas sexuais eram integradas às instituições sociais e culturais gregas, e como essas práticas eram sustentadas por crenças religiosas e valorizadas pela literatura e pela filosofia da época. Foucault demonstra como as noções modernas de tolerância e intolerância são insuficientes para compreender a complexidade e a riqueza das normas e práticas sexuais na Grécia Antiga.

Trecho do texto de Foucault

O uso dos prazeres na relação com os rapazes foi, para o pensamento grego, um tema de inquietação. O que é paradoxal numa sociedade que passa por ter “tolerado” o que chamamos “homossexualidade”. Mas talvez não seja muito prudente utilizar aqui esses dois termos.

De fato, a noção de homossexualidade é bem pouco adequada para recobrir uma experiência, formas de valoração e um sistema de recortes tão diferentes do nosso. Os gregos não opunham, como duas escolhas excludentes, o amor ao seu próprio sexo ao amor pelo sexo oposto.

As linhas de demarcação não seguiam uma tal fronteira. A oposição entre um homem temperante e senhor de si e aquele que se entrega aos prazeres era, do ponto de vista moral, muito mais importante do que aquilo que distingue, entre elas, as categorias de prazer às quais era possível consagrar-se livremente. Ter costumes frouxos consistia em não saber resistir nem às mulheres nem aos rapazes, sem que este último caso fosse mais grave do que o outro. […]  Quando se reprovava a devassidão de Alcebíades não era mais por este e menos por aquele, mas sim, como dizia Bion de Borístenes, porque “em sua adolescência ele desviou os maridos de suas mulheres e, em sua juventude, as mulheres de seus maridos”.

Inversamente, para demonstrar a continência de um homem indicava-se […] que ele era capaz de se abster tanto dos rapazes como das mulheres […].

Bissexualidade dos gregos? Se quisermos dizer com isso que um grego podia, simultânea ou alternadamente, amar um rapaz ou uma moça, que um homem casado podia ter seus paidika, que era corrente, após as inclinações “para rapazes” na juventude, voltar-se de preferência para as mulheres, então pode-se muito bem dizer que eles eram “bissexuais”.  Mas se quisermos prestar atenção à maneira pela qual refletiam sobre essa dupla prática, convém observar que eles não reconheciam nela duas espécies de “desejos”, “duas pulsões”, diferentes ou concorrentes, compartilhando o coração dos homens ou seus apetites. Podemos falar de sua “bissexualidade” ao pensarmos na livre escolha que eles se davam entre os dois sexos, mas essa possibilidade não era referida por eles a uma estrutura dupla, ambivalente e “bissexual” do desejo. A seus olhos, o que fazia com que se pudesse desejar um homem ou uma mulher era unicamente o apetite que a natureza tinha implantado no coração do homem para aqueles que são “belos”, qualquer que seja o sexo.

[…]

Quanto às noções de “tolerância” ou “intolerância”, elas também seriam muito insuficientes para dar conta da complexidade dos fenômenos. Amar os rapazes era uma prática “livre”, no sentido de que era não somente permitido pelas leis […], como também admitida pela opinião. Ou melhor, ela encontrava sólidos suportes em diferentes instituições (militares ou pedagógicas). Ela  possuía cauções religiosas em ritos e festas onde se interpelavam, a seu favor, as potências divinas que deviam protegê-la. Enfim, era uma prática culturalmente valorizada por uma literatura que a cantava, e por uma reflexão que fundamentava sua excelência. Mas a isso tudo se misturavam atitudes bem diferentes: desprezo pelos jovens fáceis ou demasiado interessados […], rejeição de certas condutas vergonhosas como a dos devassos, que, aos olhos de Cálicles, apesar de sua ousadia e de sua franqueza, era bem a prova de que nem todo prazer pode ser bom e honrado.

Referência

Foucault, Michel. História da Sexualidade: o uso dos prazeres. São Paulo: Paz e Terra, 2014, pp. 231-236.