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A mentira segundo Kant

- 4 min leitura

Imagine o seguinte caso. Uma pessoa está fugindo de um assassino e pede para se esconder em sua casa. Você aceita e logo em seguida chega o assassino e pergunta se você não viu a pessoa que acabou de esconder. O que você deveria fazer? Mentir para o assassino, dizendo que a pessoa não se encontra ali, ou falar a verdade?

A maior parte das pessoas diria: devemos mentir para salvar uma vida. Porém Immanuel Kant (1724-1804), um dos maiores filósofos da história, pensa que deveríamos falar a verdade, inclusive nesse caso. Naturalmente, o que fez com se tornasse conhecido e respeitado não foi apenas defender essa resposta que vai contra o senso comum. Ele tinha uma teoria moral bastante sofisticada para dizer isso.

Para compreendermos seu pensamento precisamos entender o que Kant chamava de Imperativo hipotético e imperativo categórico. Imperativos hipotéticos são ordens do tipo “se deseja ser aprovado na escola, então deve estudar”. Esses imperativos sempre tem a estrutura “se… então”. Essas são são ordens que qualquer pessoa deve seguir. Pelo contrário, caso uma pessoa qualquer não queira ser aprovada na escola, ela não tem qualquer necessidade de estudar. Esses imperativos são ordens apenas na medida em que uma pessoa tenha certo desejo. 

Por outro lado, imperativo categórico tem um formato diferente. Exemplos desse tipo de deveres são os deveres morais. Quando digo “você não deve mentir”, não estou fazendo uma afirmação condicional. Não estou dizendo que você não deve mentir caso goste da pessoa ou queira agradá-la. Pelo contrário, em qualquer condição não deve mentir.

Se um imperativo hipotético do tipo “você deve estudar se quiser ser aprovado” tem origem em um desejo, qual a origem de imperativos categóricos?

Há uma frase célebre de Kant que diz o seguinte:

Duas coisas me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e frequentemente o pensamento delas se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.

Kant pensava que  imperativos categóricos tinham origem na razão humana. Ele acreditava que havia uma lei moral dentro de cada pessoa, que cada ser racional seria capaz de reconhecer como verdadeira. Essa leia se resumia ao  seguinte princípio: “age apenas segundo uma regra pela qual possas ao mesmo tempo querer que se torne uma lei universal”.

Isso quer dizer que apenas aquelas ações que pode se tornar uma regra a ser seguida por qualquer pessoa em qualquer tempo podem ser consideradas corretas. Por exemplo, imagine que você precisa de um empréstimo. Pra conseguir que alguém te empreste dinheiro, terá que prometer que irá devolver.  Porém, você não tem condições de devolver. Você deveria enganar uma pessoa e pedir dinheiro emprestado, prometendo devolver mesmo sabendo que não fará isso?

Podemos pensar no princípio kantiano como um procedimento para avaliar o que é certo ou errado.

O procedimento seria o seguinte:

  1. Passo 1: transforme sua ação numa regra;
  2. Passo 2: se questione se é possível que essa regra possa ser adotada por todas as pessoas, em qualquer época ou lugar (uma lei universal).

Se transformássemos a ação do exemplo acima em uma regra, obteríamos algo do tipo: “se você precisar de um empréstimo, prometa devolvê-lo, mesmo que você saiba que não será capaz”. É possível que essa regra se torne uma lei universal? Kant diria não, porque essa é uma regra autodestrutiva. Uma vez que essa regra se tornasse uma prática universal, ninguém mais iria acreditar em  promessas de devolução e ninguém faria empréstimos baseados nelas.

Voltemos ao exemplo com o qual começamos esse texto e perguntemos: seria adequado mentir para salvar uma vida? Agora que conhecemos um pouco da teoria moral de Kant, podemos entender porque, apesar de contraintuitivo, ele defendia que seria errado mentir, mesmo nessa situação. Não podemos transformar a ação de mentir em uma lei universal, porque se isso acontece as pessoas não mais dariam qualquer importância ao que outras pessoas dissessem. Já nem mentir poderíamos mais, porque ninguém nos daria ouvidos.

Assim, para Kant, agir moralmente significa agir de acordo com o dever, mesmo que as consequências da ação não sejam positivas. O que importa para considerarmos uma ação moral é a intenção do agente moral e não o resultado.  Kant diferencia entre agir conforme o dever agir por dever. 

Para entender a diferença consideremos os possíveis motivos que levaram, por exemplo, a pessoa imaginária interrogada pelo assassino a dizer a verdade. Talvez ele tenha feito isso por estar com medo de que o assassino descobrisse de qualquer forma e o prejudicasse de alguma maneira. Nesse caso, a pessoa está agindo de acordo com o dever, está agindo por interesse e não por obrigação. Para agir por dever ela deveria pensar “irei falar a verdade, porque é meu dever não mentir” e ao invés de “irei falar a verdade, porque pode ser que acabe sendo prejudicado”.

Referências

Sally Sedgwick. Fundamentação da metafísica dos costumes: Uma chave de leitura. Petrópolis: Vozes, 2017.

James Rachels. Os Elementos da filosofia Moral. São Paulo: AMGH, 2013.