Condições de vida de animais criados para alimentação humana
Para a maior parte dos seres humanos, especialmente aqueles das modernas comunidades urbanas ou suburbanas, a forma mais direta de contato com os animais não humanos têm lugar à hora da refeição: comemo-los. Este fato simples constitui a chave das nossas atitudes para com os outros animais e também a chave para o que cada um de nós pode fazer para alterar essas atitudes. O uso e abuso dos animais criados para servir de comida excede em grande medida – tendo em conta a quantidade espantosa de animais envolvidos – qualquer outra forma de maus tratos. Só nos Estados Unidos, e em cada ano, são criados e abatidos mais de 100 milhões de vacas, porcos e ovelhas destinados ao consumo pelos humanos. Em relação às aves, o número atinge os 5 bilhões. (Isto significa que cerca de oito mil aves – na sua maioria galinhas – terão sido abatidas durante o tempo que o leitor demora a percorrer esta página.) É aqui, à nossa mesa e no supermercado do nosso bairro, que entramos em contato direto com a exploração mais intensiva de outras espécies que jamais existiu.
Geralmente, ignoramos o abuso das criaturas vivas que subjaz a comida que consumimos. A compra de comida numa loja ou restaurante é o culminar de um longo processo, do qual tudo, com excepção do produto final, é delicadamente afastado da nossa vista. Compramos a nossa carne em embalagens de plástico limpas. Quase não sangra. Não há razão para associar esta embalagem ao animal vivo, que respira, caminha e sofre. As próprias designações que lhe atribuímos escondem este fato: comemos bifes, por exemplo, e não bois.
Naturalmente, os artigos que expõem abertamente o sofrimento dos animais não se encontram nas revistas agrícolas, em especial agora, que a delicadeza da questão foi apontada à indústria pecuária. As revistas não se interessam pelo problema do sofrimento animal em si. É frequentemente aconselhado aos agricultores que evitem as práticas que fariam sofrer os animais porque, nessas condições, os animais não aumentam tanto de peso; e os agricultores são exortados a manipular os animais de forma menos brutal quando os enviam para o matadouro porque uma carcaça com hematomas atinge um valor menos elevado; mas nunca é mencionada a ideia de que se deveria evitar a manutenção dos animais em condições desconfortáveis simplesmente por isso, em si, ser uma coisa má. Ruth Harrison, autora de Animal Machines, um pioneiro dos métodos de criação intensiva utilizados na Grã-Bretanha, concluiu que “a crueldade só é reconhecida quando deixa de haver lucro.” Essa é, certamente, a atitude evidenciada nas páginas das revistas da especialidade, nos Estados Unidos como na Grã- Bretanha.
Ainda assim, pode saber-se muita coisa a partir dessas revistas acerca da vida dos animais nas explorações pecuárias. É possível conhecer as atitudes de alguns dos agricultores para com os animais que se encontram sob o seu poder ilimitado e absoluto e tem-se também acesso aos novos métodos e técnicas que são adaptados e aos problemas que surgem devido à aplicação de tais técnicas. Desde que saibamos algo sobre os requisitos aplicáveis aos animais de criação, esta informação é suficiente para nos fornecer uma imagem geral da indústria pecuária dos nossos dias. Podemos tornar essa imagem mais clara se nos debruçarmos sobre alguns dos estudos científicos efetuados sobre o bem-estar dos animais, que, em resposta à pressão exercida pelo movimento de Libertação Animal, estão a surgir cada vez mais nas publicações agrícolas e veterinárias.
O primeiro animal a ser transferido das condições relativamente naturais vividas na quinta tradicional foi a galinha. Os seres humanos utilizam as galinhas de duas formas: consomem a sua carne e os seus ovos. Existem agora técnicas normalizadas de produção em massa para obtenção destes dois produtos.
Os promotores do negócio pecuário consideram que o aumento da indústria das aves foi um dos grandes sucessos da história da agricultura. No final da Segunda Guerra Mundial era ainda raro ver-se galinha sobre a mesa. Esta provinha sobretudo de pequenos agricultores independentes ou consistia em galos desnecessários, produzidos por galinhas poedeiras. Atualmente, só nos Estados Unidos são abatidos todas as semanas 102 milhões de frangos – é esta a designação mais comum das aves assim produzidas – após terem sido criados em instalações semelhantes à fábricas, altamente automatizadas, que pertencem a grandes empresas que controlam a produção. Oito destas empresas representam mais de 50 por cento dos 5,3 bilhões de aves abatidas anualmente nos Estados Unidos.
O passo fulcral na transformação das galinhas de aves de quinta em objetos manufaturados foi a sua circunscrição em espaços fechados. Um produtor de frangos obtém um carregamento, procedente dos locais de incubação, de 10 mil, 50 mil, ou mais pintos com um dia e coloca-os num edifício comprido e sem janelas – geralmente sobre o pavimento, embora alguns produtores utilizem camadas de gaiolas para poder ter um maior número de aves num edifício de dimensões idênticas. No interior do edifício, todos os aspectos do ambiente em que se encontram as aves são controlados, de forma a fazê- las crescer mais rapidamente com menos alimento. A comida e a água são distribuídas automaticamente, a partir de alimentadores suspensos do teto. A iluminação é ajustada consoante os conselhos dados pelos investigadores agrícolas: por exemplo, pode ser muito intensa durante vinte e quatro horas por dia na primeira e na segunda semanas, para incentivar o aumento rápido de peso; depois, a luz pode ser ligeiramente reduzida e ligada e desligada por períodos de duas horas, na convicção de que as galinhas estão mais dispostas a comer depois de um período de sono; e, finalmente, chega uma altura, por volta das seis semanas de idade, em que as aves já cresceram tanto que o espaço se toma exíguo e, por isso, a luz é mantida sempre fraca. A razão para esta diminuição da intensidade luminosa é reduzir a agressividade provocada pela ocupação excessiva do espaço.
Os frangos são mortos quando têm sete semanas (a duração natural da vida de uma galinha é de cerca de sete anos). No final deste breve período, as aves pesam entre dois e dois quilos e meio – no entanto, podem ainda ter apenas um espaço disponível de menos de 45 centímetros quadrados por ave (menos do que a área de uma folha de papel A4). Nestas condições, quando existe iluminação normal, a tensão provocada pela falta de espaço e a ausência de escapes naturais para a energia das aves conduz à eclosão de lutas em que as aves tiram penas umas às outras e, por vezes, matam-se e comem-se umas às outras. Descobriu-se que a luz reduzida diminui a incidência deste tipo de comportamento e, portanto, os animais estão condenados a viver as suas últimas semanas em semi-obscuridade.
Extracção de penas e canibalismo na linguagem do produtor de frangos constituem “vícios”. No entanto, não se trata de vícios naturais: são resultado da tensão e da exiguidade de espaço a que os produtores modernos submetem as suas aves. As galinhas são animais muito sociáveis e, no pátio da quinta, desenvolvem uma hierarquia, por vezes chamada “ordem de bicos”. Cada ave sujeita-se, na gamela ou noutro local, àquelas que se encontram numa posição mais elevada da ordem de bicos, tendo prioridade sobre os que se encontram mais abaixo na hierarquia. Podem existir alguns confrontos até a ordem ser estabelecida mas, na maior parte das vezes, uma demonstração de força é suficiente, dispensando-se o verdadeiro contato físico. Como escreveu Konrad Lorenz, um famoso observador do comportamento animal, na época em que ainda eram pequenos os grupos de aves: Os animais conhecer-se-ão, então, uns ao outros? Claro que sim (…) Todo o agricultor que tem aves o sabe (…) existe uma ordem muito definida, e cada animal teme os que lhe são hierarquicamente superiores. Após algumas disputas, que não chegam necessariamente à violência, cada ave sabe qual das outras tem de temer e quais têm de lhe mostrar respeito. Não apenas a força física, mas também a coragem pessoal, a energia e até a autoconfiança de cada ave são decisivas para a manutenção da ordem de bicos.
Outros estudos há que demonstraram que um grupo de até noventa galinhas pode manter uma ordem social estável, sendo que cada ave sabe qual o lugar que ocupa; mas 80 mil aves, apinhadas num único edifício, é, obviamente, uma situação totalmente diferente. As aves não conseguem estabelecer uma ordem social e, como resultado, lutam frequentemente umas com as outras. Para além da incapacidade de uma única ave reconhecer tantas outras, o simples fato de se encontrarem amontoadas num espaço exíguo contribui, provavelmente, para a irritabilidade e a excitação das galinhas, tal como acontece com os seres humanos e os outros animais. Isto é algo que os agricultores sabiam desde há muito: A extracção de penas e o canibalismo tornam-se facilmente vícios graves entre as aves que são mantidas em condições extremas. Implicam produtividade reduzida e perda de lucros. As aves aborrecem-se e bicam uma qualquer parte proeminente da plumagem de outra ave (…) Ao passo que a ociosidade e o tédio constituem fatores que predispõem aos vícios, o alojamento em instalações exíguas e abafadas constituem fatores que contribuem para estes comportamentos.
Os agricultores devem pôr fim aos “vícios”, uma vez que estes custam dinheiro; mas, embora eles saibam que a ocupação excessiva do espaço é a causa que subjaz a estes, não podem fazer nada quanto a ela, uma vez que, atendendo ao estado existente nesta indústria, a eliminação desta ocupação excessiva poderia significar a eliminação simultânea da margem de lucro. Os custos de construção, do equipamento de alimentação automática, do combustível utilizado no aquecimento e ventilação do edifício e do trabalho permaneceriam inalterados, mas implicariam a existência de menos aves para venda por edifício e o rendimento seria reduzido. Assim, os agricultores dirigem os seus esforços no sentido de reduzir as consequências da tensão, que lhes custa dinheiro. As condições artificiais em que os animais são mantidos provoca o aparecimento de vícios mas, para os controlar, o agricultor tem de tomar essas condições ainda mais artificiais. A fraca iluminação é uma das formas de o fazer. Há uma medida ainda mais drástica, cada vez mais utilizada na indústria, que consiste em “desbicar” as aves. Introduzida pela primeira vez em San Diego, nos anos 40, o corte do bico costumava ser feito com recurso a um maçarico. O agricultor queimava a parte superior dos bicos das galinhas, de forma que estas deixavam de conseguir bicar-se mutuamente. Esta técnica rude foi rapidamente substituída pela aplicação de um ferro de soldar adaptado à função, e, hoje em dia, preferem-se os instrumentos especialmente concebidos para o efeito, com forma de guilhotina, equipados com lâminas quentes.
Introduz-se o bico do pinto no instrumento e a lâmina quente corta-lhe a extremidade. A operação efetua-se com muita rapidez – faz-se em cerca de quinze aves por minuto. Esta velocidade significa que a temperatura e a capacidade de corte da lâmina podem variar, resultando em cortes descuidados e ferimentos graves: Uma lâmina excessivamente quente produz feridas na boca. Uma lâmina fria pode ter como consequência o desenvolvimento de uma excrescência carnuda e com forma de bolbo na extremidade da mandíbula. Estas excrescências são muito sensíveis.
Joseph Mauldin, um cientista especialista em avicultura que trabalha na extensão da Universidade da Geórgia, fez o relato das suas observações de campo numa conferência sobre saúde avícola: “Existem muitos casos de narinas queimadas e mutilações graves, devidas a operações incorretas, que sem dúvida influenciam o comportamento alimentar e os fatores de produção, provocando dor crônica e intensa. Avaliei a qualidade do corte de bicos para explorações pecuárias privadas e a maior parte satisfaz-se ao conseguir que 70% das ocorrências se insiram nas categorias de corte correto (…) As frangas de substituição vêem os seus bicos cortados por equipes que são remuneradas em função da quantidade de trabalho, e não da sua qualidade.”
Mesmo quando a operação é efetuada corretamente, seria errado julgá-la indolor, como se se tratasse de cortar unhas. Como referiu há alguns anos um comitê especializado do governo britânico, que trabalhou sob a direcção de um zoólogo, o Professor F. W. Rogers Brambell: “Entre a parte rígida e o osso existe uma camada fina de tecido mole altamente sensível, semelhante ao “sabugo” da unha humana. A faca quente utilizada no corte dos bicos rasga através deste complexo de parte rígida, osso e tecido sensível, provocando dor intensa.”
Texto retirado do livro Libertação Animal, de Peter Singer