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A mais valia segundo Karl Marx

- 7 min leitura

A mais valia é um conceito usado por Karl Marx para compreender uma série de aspectos do capitalismo. Esse conceito se refere ao fato de que, nesse sistema econômico, os empresários sempre procuram pagar o menor salário possível ao empregado e extrair dele o máximo de trabalho. No século XIX, período em que Marx viveu, isso significava pagar apenas o suficiente para o trabalhador se manter vivo e exigir dele 12 ou 14 horas de trabalho

Assim, uma pessoa que recebe diariamente, por exemplo, 50 reais pelo seu trabalho, produz o suficiente para remunerar isso em 6 horas. No entanto, como é obrigado a trabalhar durante 12 horas, o valor a mais que produziu fica com seu patrão. É isso que Marx chama de mais valia: o valor a mais produzido pelo trabalhador que não lhe é pago e assim se torna o lucro do empresário. A mais valia é a origem do lucro do capitalista.

Marx pensava que sua análise do lucro do empresário revela como o sistema capitalista é injusto, já que está baseado, assim como sistemas escravagistas e o feudalismo na idade média, na exploração do trabalho. Ou seja, no capitalismo, as pessoas que trabalham, embora recebam um salário, não ficam com todo o fruto de seu trabalho. Parte dele é apropriado pelo capitalista. Por isso que alguns movimentos operários da época defendiam “o fruto integral do trabalho”.

Vamos ver em detalhes como funciona o processo de criação de mais valia de acordo com Marx.

A teoria do valor trabalho

Um dos problemas com o quais Marx se ocupou era determinar qual a origem do valor de um produto. Uma casa, por exemplo, vale bem mais do que um prato de comida. Por que existe essa diferença? E, de maneira geral, o que determina o valor das mercadorias que são vendidas no sistema capitalista?

Marx adota a teoria do valor trabalho dos economistas liberais Adam Smith e David Ricardo. De acordo com essa teoria, o valor de um produto se origina do trabalho usado para produzi-lo. É o trabalho a origem de todo valor. Se não há trabalho, não há valor.

Assim, para Marx, o valor de uma mercadoria qualquer depende do tempo de trabalho necessário para produzi-la. Voltemos ao exemplo inicial: por que uma casa é mais cara que um prato de comida? De acordo com a teoria do valor trabalho, isso se deve ao fato simples de que o tempo de trabalho necessário para produzir a primeira é bem maior do que o necessário para produzir o segundo: vários meses e até anos no primeiro caso e menos de um dia no segundo.

Como surge a mais valia?

Num sistema capitalista, os capitalistas investem seu dinheiro na criação de fábricas e na contratação de empregados para produzirem e através desse processo obter lucro.

Se aceitamos a teoria do valor trabalho surge um problema difícil de resolver para o qual Marx pensava ter a solução. Se o valor de um produto é definido pela quantidade de tempo de trabalho necessário para produzi-lo, como é possível que o capitalista obtenha lucro?

Vamos analisar melhor esse problema. Imagine uma mesa de cozinha qualquer que custa 90 reais e é produzida de forma artesanal, sem uso de ferramentas sofisticadas. Esses 90 reais, de acordo com a teoria do valor trabalho, equivalem à quantidade de trabalho incorporado no produto.

A mesa é a soma de uma série de outros trabalhos. Do tempo de trabalho necessário para produzir a madeira que será usada como matéria prima na produção da mesa; do tempo de trabalho necessário para construir o espaço no qual a mesa será produzida e as ferramentas que serão utilizadas nesse processo. E ainda, do trabalho dispensado para produzir os meios de subsistência do trabalhador que irá produzir a mesa e do empresário que irá gerenciar o processo de produção (basicamente, o alimento que estes precisam comer para conseguir trabalhar durante um determinado período). Assim, se somarmos todo o trabalho necessário para produzir a mesa, iremos chegar ao valor dessa mesa.

O trabalho incorporado nessa mesa pode ser dividido da seguinte forma (trata-se de um exemplo bastante fictício):

  • Trabalho executado pelo trabalhador que produziu a mesa. Suponha que um trabalhador seja capaz de produzir uma mesa por dia. Suponha também que valor de seu trabalho é 30 reais diários. É isso o que ele gasta para poder se alimentar, vestir, se abrigar, em resumo, é isso que ele gasta para poder trabalhar durante um dia.
  • Trabalho incorporado na matéria prima usada na produção da mesa. Suponha que o valor da matéria prima usada para construir uma mesa seja 50 reais. Novamente, isso equivale à quantidade de trabalho necessário para produzir essa matéria prima.
  • Trabalho incorporado nas ferramentas e no espaço usado para produzir a mesa. Suponha que o custo do desgaste desses insumos seja de 5 reais para produzir uma mesa.
  • Trabalho despendido pelo capitalista para gerenciar a produção. Também precisa gastar 30 reais diariamente para se manter vivo e trabalhando. Como gerencia 6 trabalhadores, gasta 5 reais para produzir uma mesa

Assim, se somarmos todo o trabalho despendido na produção da mesa, chegamos ao valor da mesa: 30 + 50 + 5 + 5 = 90 reais.

O problema é o seguinte. Num sistema capitalista, os empresários investem seu dinheiro na criação de fábricas e contratação de trabalhadores com o objetivo de obter lucros. Porém, se você analisar o caso da mesa, perceberá que ela não deu lucro: o capitalista gastou 90 reais para produzi-la e seu valor é exatos 90 reais. Se vender, vai apenas resgatar aquilo que já gastou sem obter um centavo a mais.

Porém, o lucro é um fato incontestável do sistema capitalista. Como ele surge?

A mais valia é trabalho a mais não pago

Para Marx, a resposta ao problema do lucro do capitalista parecia clara: o capitalista explora o trabalhador.

Em alguns sistemas econômicos, como a escravidão no período do Brasil Colônia, por exemplo, a exploração do trabalho era clara. Os donos de escravos os obrigavam a trabalhar e se apropriavam dos frutos de seu trabalho. Isso os permitia viver uma vida confortável sem ter que trabalhar.

No sistema capitalista, isso aparentemente não acontece. Ninguém é obrigado a trabalhar e todos recebem um salário pelo seu trabalho. No entanto, Marx afirma que a exploração ainda continua existindo, mas de forma menos ostensiva. Isso porque os capitalistas se apropriam dos frutos do trabalho de seus empregados, tal como os senhores de escravos se apropriavam dos frutos do trabalho de seus escravos. Vamos ver por que e como isso ainda acontece.

Vimos que o valor recebido pelo trabalhador durante um dia de trabalho equivale ao valor necessário para que consiga sobreviver e trabalhar novamente no dia seguinte. Equivale, portanto, ao valor que é necessário para comprar alimento, abrigo etc. Supomos no exemplo acima que 30 reais eram o suficiente para o trabalhador suprir essas necessidades.

Quando tempo ele precisa trabalhar para gerar um valor equivalente ao valor que consome para manter sua força de trabalho? Suponha que em seis horas em um dia ele seja capaz de produzir esse valor. Assim, caso ele trabalhe durante um período de seis horas, é capaz de produzir um valor equivalente ao que consome em suas necessidades vitais.

Porém, ao se tornar empregado de um capitalista, esse controla quanto tempo terá que trabalhar. E aqui está o segredo do lucro do capitalista. Embora pague um salário equivalente a seis horas de trabalho, exige que seu empregado cumpra uma jornada de 12 horas e se apropria do valor criado nessas seis horas adicionais.

Assim, a mais valia é o valor a mais criado pelo trabalhador e que não lhe é pago. Ou seja, o trabalho executado pelo empregado valia mais do que lhe foi pago pelo empresário. Esse, por sua vez, se apropriou do mais valor a fim de obter lucro com o dinheiro que investiu na produção. O lucro, portanto, é o resultado da exploração do trabalhador pelo capitalista. Se esse pagasse ao trabalhador um salário justo, não obteria lucro, apenas uma pequena remuneração pelo trabalho que realizou.

A exploração do trabalho no século XIX

Como vimos até aqui, a origem da mais valia está no valor excedente criado pelo trabalho a mais do empregado. Assim, segundo Marx, o lucro do capitalista depende da capacidade desse aumentar a carga de trabalho e reduzir o salário ao mínimo possível.

No livro O Capital, no qual faz sua análise do sistema capitalista, Marx cita alguns relatórios de inspetores responsáveis por avaliar as condições de trabalho nas fábricas da Inglaterra. Esses relatórios nos dão uma ideia da condição de trabalho das pessoas na época. Esses relatórios mostram, em especial, o tamanho da jornada de trabalho num contexto em que ainda não existiam leis trabalhistas que, como hoje, limitam o dia de trabalho a 8 horas e exigem pagamento de hora extra por trabalho adicional.

O primeiro relato é sobre fábricas de produção de rendas

“O sr. Broughton, county magistrate [magistrado municipal], declarou, como presidente de uma assembleia ocorrida na Câmara Municipal de Nottingham, em 14 de janeiro de 1860, que entre a população ocupada com a fabricação de rendas reina um grau de sofrimento e privação inéditos no restante do mundo civilizado […]. Crianças entre 9 e 10 anos de idade são arrancadas de suas camas imundas às 2, 3, 4 horas da manhã e forçadas a trabalhar, para sua mera subsistência, até às 10, 11, 12 horas da noite, enquanto seus membros se atrofiam, seus corpos definham, suas faces desbotam e sua essência humana se enrijece inteiramente num torpor pétreo, cuja mera visão já é algo terrível. Não nos surpreende que o sr. Mallett e outros fabricantes se manifestem em protesto contra qualquer discussão sobre esse assunto […]. O sistema, tal como o reverendo Montagu Valpy o descreveu, é de ilimitada escravidão, e escravidão em sentido social, físico, moral e intelectual […]. O que se deve pensar de uma cidade que realiza uma assembleia pública para peticionar que a jornada de trabalho para os homens deve ser limitada a 18 horas? […] Protestamos contra os plantadores de algodão da Virgínia e da Carolina. Mas seria seu mercado de escravos, com todos os horrores dos açoitamentos e da barganha pela carne humana, mais detestável do que essa lenta imolação de seres humanos que ocorre para que se fabriquem véus e colarinhos em benefício dos capitalistas?”

Em outro relatório, também citado por Marx, um trabalhador relata o seguinte:

“Chego às 6, às vezes às 4 horas da manhã. Trabalhei esta noite inteira, até as 6 horas da manhã de hoje. Não dormi desde a última noite. Além de mim, outros 8 ou 9 meninos trabalharam a noite inteira sem parar. Todos, com exceção de um, voltaram ao trabalho nesta manhã. Recebo 3 xelins e 6 pence” (1 táler e 5 centavos) “por semana. Quando trabalho a noite inteira, não recebo nada a mais por isso. Na última semana, trabalhei duas noites sem parar.”

Era essa a realidade que levou a uma série de movimentos socialistas e comunistas na Europa do século XIX. A tal ponto que Marx e Engels escreveram, no Manifesto Comunista, de 1848, que “um fantasma ronda a Europa, o fantasma do comunismo”. Tais movimento procuravam por fim, de uma forma ou outra, à todo o sofrimento e exploração gerado pelo capitalismo

Referências

Marx, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

Marx, Karl; Engel, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2005.

Hunt, E. K. História do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.