O argumento de Stuart Mill em defesa da democracia
Introdução
O trecho apresentado é extraído do livro “Considerações sobre o Governo Representativo”, de John Stuart Mill. Nele, Mill explora a ideia de que a forma ideal de governo é aquela em que a soberania reside na comunidade como um todo, permitindo que cada cidadão não apenas tenha voz, mas também participe ativamente do governo.
Mill argumenta que um governo verdadeiramente popular, ou seja, um governo representativo onde todos os membros da comunidade têm participação, é superior em termos de promoção de uma boa administração e desenvolvimento das capacidades morais, intelectuais e ativas dos cidadãos. Ele defende que esse tipo de governo é o mais propício para dirigir bem os negócios públicos e para elevar o caráter nacional.
O filósofo britânico destaca dois princípios fundamentais para sustentar sua visão. O primeiro é que os interesses de uma pessoa são melhor protegidos quando ela mesma tem a capacidade e a disposição de defendê-los. O segundo princípio é que o progresso e a prosperidade de uma sociedade aumentam diretamente com o engajamento e a energia de seus membros na promoção do bem comum.
Mill utiliza o exemplo das classes trabalhadoras na Inglaterra para ilustrar como a exclusão de participação direta no governo pode levar a uma representação inadequada de seus interesses e necessidades no Parlamento. Ele critica a forma como as questões que afetam os trabalhadores são frequentemente tratadas sem consideração adequada de suas perspectivas.
Trecho do texto
Não há nenhuma dificuldade em demonstrar que a forma ideal de governo é aquela em que a soberania, o poder supremo de controle em última instância, pertence à massa reunida da comunidade; aquela em que todo o cidadão não apenas tem uma voz no exercício do poder supremo, mas também é chamado, pelo menos ocasionalmente, a tomar parte ativa do governo pelo exercício de alguma função pública, local ou geral.
Para julgar esta proposição, devemos examiná-la com relação aos dois ramos em que se divide a aferição do mérito de um governo: a) em que medida ele promove a boa administração dos negócios por meio das faculdades morais, intelectuais e ativas existentes nos vários membros da comunidade; b) qual o seu efeito na aprimoração ou deterioração dessas faculdades.
Um governo totalmente popular é a única política que pode ter alguma pretensão de possuir essa característica além de satisfazer às duas condições elementares da excelência de uma constituição política. Dentre todos os outros governos possíveis, ele é o mais favorável a uma boa direção dos negócios e uma elevação e aprimoramento do caráter nacional.
Sua superioridade com relação ao bem-estar atual baseia-se em dois princípios, com verdade e aplicabilidade tão universais quanto quaisquer outras proposições gerais emitidas sobre assuntos humanos. O primeiro princípio é o de que os direitos e interesses de todas as pessoas só estão certos de não serem ignorados quando a própria pessoa interessada é capaz de defendê-los e está habitualmente disposta a fazê-lo. O segundo é que o nível e a extensão do propriedade geral é diretamente proporcional ao número e variedade de energia pessoais empenhadas em promovê-la.
Para atribuir a estas duas proposições uma forma mais adequada à aplicação que lhes estamos dando, podemos dizer: os seres humanos só estão a salvo dos maus atos de seus semelhantes na medida em que são capazes de defenderem a si mesmo; e só atingem uma alto grau de sucesso em sua luta contra a natureza na medida em que são autossuficientes, dependendo daquilo que eles mesmos podem fazer, separadamente ou em conjunto, muito ais do que daquilo que os outros podem fazer por eles.
Neste país, por exemplo, as chamadas classes trabalhadoras podem ser consideradas como excluídas de toda a participação direta ao governo. O Parlamento, ou qualquer um de seus membros, alguma vez já examinou uma questão qualquer com os olhos de um trabalhador? Quando um assunto de interesse para os ditos trabalhadores é levantado, ele é examinado de um ponto de vista diferente daquele dos patrões? Não digo que a visão dos trabalhadores nestas questões é geralmente mais perto da verdade do que as outras: mas em alguns casos é tão perto quanto; e em todos os casos ela deve ser respeitosamente ouvida, ao invés de ser, como tem sido, não apenas afastada, mas também ignorada. Sobre a questão das greves, por exemplo, talvez não exista nenhum dos membros principais das duas câmaras que não esteja convencido de que os patrões estão completamente certos em sua maneira de encarar o assunto, e que a visão dos trabalhadores é simplesmente absurda. Os que estudaram a questão sabem o quão longe isto está da verdade, e o quanto este ponto seria discutido de maneira diferente e muito menos superficial, se as classes que fazem greve fossem capazes de se fazerem ouvir no Parlamento.
Referência
Mill, John Stuart. Considerações sobre o governo representativo. Brasília: Editora Universidade de Brasília, pp. 31-33.