O bom selvagem de Rousseau
Imagine a cena: um avião faz um pouso de emergência e algumas partes se soltam, a cabine se enche de fumaça e há grande risco de incêndio. Todos percebem que precisam deixar o avião imediatamente. O que acontece?
– No planeta A, os passageiros viram-se para os que estão ao lado e perguntam se estão bem. Os que precisam de assistência recebem ajuda para sair primeiro do avião. As pessoas estão dispostas a sacrificar a própria vida, mesmo por estranhos que nunca viram antes.
– No planeta B, cada um cuida de si mesmo. Instala-se o pânico. Todos se empurram e se atropelam. Crianças, idosos e pessoas com deficiência são pisoteadas. 1
Em que planeta nós vivemos?
O problema acima é apresentado a seus alunos por Tom Postmes, professor de Psicologia Social na Universidade Groningen, na Holanda. Seu interesse filosófico está em nos fazer pensar sobre questões fundamentais: quem somos nós? Qual é a nossa natureza?
Diante do problema, somos levados a pensar o que faríamos em uma situação limite, na qual as normas morais e leis cotidianas estão ausentes ou não têm poder de influenciar nosso comportamento. Diante do risco da morte, provavelmente nossos instintos assumirão o controle e revelaremos nossa verdadeira natureza.
“Eu estimaria que cerca de 97% das pessoas acham que vivemos no planeta B”, diz Postmes2. Será essa a nossa natureza?
O bom selvagem
Rousseau discordava dessa visão tão comum sobre a natureza humana. Em 1752 publicou um livro que imediatamente despertaria fortes reações e polêmicas: O discurso sobre a origem da desigualdade entre homens. Qual sua conclusão sobre a natureza humana? Que o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe. Em outras palavras, vivemos no planeta A.
Muito já havia sido escrito sobre a questão da natureza humana antes de Rousseau: Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, apenas para citar três filósofos que marcaram a história com suas ideias. Ao último, inclusive, devemos muito das nossas ideias sobre o comportamento humano livre das amarras das leis e da moralidade. Ele dizia que, na ausência de um governo e de leis, viveríamos em uma guerra de todos contra todos.
Apesar de todo esse debate sobre a natureza humana, Rousseau alegava que pouco havia sido compreendido sobre o assunto. No prefácio de seu Discurso, afirmou: “O mais útil e o menos avançado de todos os conhecimentos humanos parece-me ser o do homem”3.
Há uma razão para esse ser o conhecimento menos avançado. Não vemos por aí o homem em seu estado natural. Os seres humanos que conhecemos vivem em sociedades e foram sendo modificados pelas circunstâncias em que vivem, pelas crenças e costumes criados ao longo dos tempos. Somos, diz Rousseau,
“como a estátua de Glauco, que o tempo, o mar e as intempéries tinham desfigurado de tal modo que se assemelhava mais a um animal feroz do que um deus, a alma humana, alterada no seio da sociedade por milhares de causas sempre renovadas, pela aquisição de uma multidão de conhecimentos e de erros […] mudou de aparência a ponto de tornar-se quase irreconhecível.”4.
Para tentar compreender quem é esse homem em seu estado natural, o filósofo irá utilizar a boa e velha especulação filosófica e relatos de viajantes europeus sobre os povos da América, África e Ásia. Um dos efeitos desses relatos foi a compreensão de que muito do que se considerava natural nas sociedades européias, como os governos comandados por reis, estava ausente em outras sociedades e talvez não fosse tão natural assim.
No entanto, é importante não fazer confusões. Rousseau não está dizendo que os povos indígenas nas Américas, por exemplo, vivem em um estado de natureza e basta conhecer seu comportamento para compreender quem somos. Tais povos, na visão do filósofo, também viviam em sociedade, foram educados dentro de costumes e hábitos artificiais, e estavam afastados do ser humano em seu estado natural, ainda que menos do que as sociedades européias. Para reconstituir esse homem em estado de natureza, é necessário mais do que a observação de sociedades distantes.
Como Rousseau faz isso? Como ele separa aquilo que é natural no homem daquilo que é artificial?
O homem natural: piedade e amor de si
Para isso, pensa Rousseau, devemos retornar ao momento da história humana em que os homens ainda não viviam em sociedade. Chegando aí, o filósofo imagina indivíduos vivendo de forma independente e com poucas necessidades, sobrevivendo facilmente com o que a natureza tem a oferecer:
“vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil do que outros, mas, afinal de contas, organizado mais vantajosamente do que todos: vejo-o saciando-se debaixo de um carvalho, matando a sede no primeiro regato, encontrando o seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto; e eis satisfeitas as suas necessidades.”5.
Com tão poucas necessidades e satisfazendo-as facilmente, não há porque juntar esforços com outros seres humanos. Sem interesses comuns, os homens vivem solitários na natureza, raramente encontrando outros da mesma espécie.
“Nesse estado primitivo, não tendo casas, nem cabanas, nem propriedades de nenhuma espécie, cada qual se alojava ao acaso e muitas vezes por só uma noite; os machos e as fêmeas se uniam fortuitamente, conforme o encontro, a ocasião e o desejo” 6.
Na história pensada por Rousseau, é apenas mais tarde que surgirá a família e, a partir dela, as primeiras comunidades.
Rousseau identifica nesse momento do desenvolvimento humano a presença de dois instintos naturais: o amor de si e a piedade.
O primeiro é um instinto de preservação que está presente nos outros animais. Nada mais é do que um impulso que o leva a fazer ações que o manterão vivo: caçar, pescar, colher frutos das árvores, se abrigar, se defender de ataques.
Para aqueles que concluem que os seres humanos são naturalmente agressivos e vivem em conflito por causa de seu instinto de conservação, Rousseau lembra de outra característica: a piedade. Essa “tempera o ardor que ele tem por seu bem-estar com uma repugnância inata de ver sofrer seu semelhante”7.
Para mostrar como esse sentimento é natural, o filósofo observa que mesmo os animais sofrem diante do sofrimento alheio:
“Um animal não passa sem inquietação perto de um animal morto de sua espécie: alguns dão mesmo uma espécie de sepultura; e os tristes mugidos do gado, ao entrar no matadouro, anuncia a impressão que ele recebe do horrível espetáculo que o comove”. 8
Essa disposição natural é forte o suficiente para manter os homens no estado de natureza em paz com seus semelhantes. É somente com surgimento da sociedade, da linguagem e da filosofia que tal instinto perde força:
“Pode-se impunemente degolar o semelhante debaixo da janela; é só tapar os ouvidos e argumentar um pouco, para impedir que a natureza, revoltando-se nele, o identifique com aquele que se assassina. O homem selvagem não tem esse admirável talento, e, por falta de sabedoria e de razão, vemo-lo sempre entregar-se, aturdido, ao primeiro sentimento de humanidade. Nos motins, nas brigas de rua, a populaça se aglomera, e o homem prudente se afasta; é a canalha, são as mulheres dos mercados que separam os combatentes e impedem a gente honesta de se degolar mutuamente.”9
A desvantagem do conflito
Para Rousseau, existe um conjunto de fatores que contribui para manter a paz no estado de natureza. Já falamos sobre as poucas necessidades, facilmente satisfeitas, e a piedade natural. Mas há ainda muitas outras.
No cenário desenhado por Rousseau, as causas comuns do conflito estão ausentes. Uma delas são as ofensas. Quando vivemos em comunidades, passamos a dar valor para o que dizem sobre nós. Assim, uma palavra ou gesto podem ser motivo para uma briga que levará à morte. Ora, no estado de natureza, os homens vivem isolados e sequer possuem linguagem. A ofensa não tem sentido nesse contexto, pois esta pressupõe darmos valor para o que outros pensam e dizem sobre nós. É um fenômeno que só existe na sociedade.
Mas e a desigualdade natural que existe de força e inteligência entre os homens não teria levado ao domínio e opressão dos mais fracos pelos mais fortes?
Rousseau não vê como isso poderia acontecer. Ainda que alguém possa roubar o que outro caçou ou colheu, fazer outros seres humanos obedecerem é mais complicado e exige muitos desenvolvimentos.
“Se me expulsam de uma árvore, estou livre para ir para outra; se me atormentam em um lugar, quem me impedirá de passar para outro? Se encontro um homem de força muito superior à minha, e, além disso, muito depravado, muito preguiçoso e muito feroz, para me constranger a prover à sua subsistência enquanto ele permanece ocioso, é preciso que ele se resolva a não me perder de vista um só instante, que me deixe amarrado com grande cuidado enquanto dorme, de medo que eu escape ou que o mate; isto é, fica obrigado a se expor voluntariamente a um trabalho muito maior do que o que quer evitar, é do que me dá a mim mesmo. Depois de tudo isso, sua vigilância se relaxa por um momento, um barulho imprevisto fá-lo voltar a cabeça: dou vinte passos na floresta, meus ferros se quebram, e nunca mais me tornará a ver. 10
Com o nascimento das comunidades e da agricultura, tudo isso vai mudar. Os seres humanos começarão a acumular bens, a se comparar uns com os outros, se importar com a opinião alheia e a se ofender, sentir ciúmes e raciocinar em defesa dos próprios interesses em prejuízo da piedade natural. É, portanto, a passagem do homem natural para a civilização que faz surgirem os problemas sociais que conhecemos desde o início da história: opressão, escravidão, guerras, desigualdade.
O sentido do bom selvagem
As ideias de Rousseau não foram muito bem recebidas por seus contemporâneos. Voltaire, seu amigo e certamente um dos filósofos mais espirituosos da história, não lhe poupou o sarcasmo:
“Recebi, senhor, vosso novo livro contra o gênero humano. Obrigado. Nunca se empregou tanta sutileza no sentido de nos bestializar; dá vontade de andar de quatro, quando acabamos de ler o seu livro.”11
Ao contrário do que fizeram crer alguns críticos da época, o objetivo do Discurso não era defender um retorno a esse estado natural. A discussão sobre a natureza humana tem outro propósito para Rousseau. Ele não pensava ser possível retornar ao estado de natureza, mas, olhando à sua volta, via uma sociedade com muitos problemas. Olhando para a natureza humana, via que isso era contingente. As coisas estavam dando errado não porque o homem é assim, mas porque a sociedade o transformou nisso.
Seu otimismo sobre nossa natureza dava sentido para seu trabalho futuro. Nos livros que escreverá depois do Discurso sobre a Desigualdade, Emílio ou da educação e O contrato social, pensará como educar as crianças e organizar o governo da sociedade de modo a garantir que a natureza humana não seja corrompida pela sociedade.
Referências
Bregman, Rutger. Humanidade: uma história otimista do homem. São Paulo: Planeta, 2021.
Junior, José Benedito de Almeida. Como ler Jean-Jacques Rousseau. São Paulo: PAULUS Editora, 2013.
Hobbes, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Rousseau, Jean-Jacques. O contrato social. Porto Alegre: L&PM, 2007.
Rousseau, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Porto Alegre: L&PM, 2008.