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O que é uma sociedade de controle?

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Michel Foucault descreveu como, a partir do século XVIII, o controle sobre as pessoas passou a acontecer principalmente em espaços fechados e bem delimitados. Pense em instituições como escolas, prisões, hospitais e fábricas. Cada uma dessas instituições tinha a função de disciplinar as pessoas de acordo com regras rígidas. A escola ensinava a obedecer a horários e a respeitar a autoridade dos professores. A prisão, por sua vez, castigava e tentava corrigir comportamentos considerados errados. Foucault chamou tal sociedade de “sociedade disciplinar”.

Mas as coisas mudaram. Hoje, o controle sobre nossas vidas não acontece apenas dentro dessas instituições. Ele está em todo lugar, pensa o filósofo Gilles Deleuze. É aqui que entra o conceito de “sociedade de controle”.

Controle descentralizado

Diferente da sociedade disciplinar, onde o controle era concentrado e visível, na sociedade de controle ele é muito mais sutil e descentralizado. Em vez de ser confinado a instituições específicas, ele acontece em todo momento e lugar.

Os elementos fundamentais da sociedade disciplinar incluíam instituições físicas que delimitavam claramente onde o controle começava e terminava. Pense na escola: enquanto você está dentro dela, seu comportamento é rigidamente controlado por horários, regras e autoridades. Mas ele é limitado, pois quando você sai desse espaço está livre pode ignorar tudo que a escola exige.  

Já na sociedade de controle, esses elementos são substituídos por dispositivos eletrônicos, como câmeras de monitoramento, telefones, cartões, computadores e outros meios digitais que permitem direcionar o comportamento humano em qualquer lugar e a qualquer momento, de forma contínua e descentralizada. 

A notícia de um homem que foi levado à delegacia por usar um cartão de crédito perdido ilustra bem como esses múltiplos dispositivos podem atuar juntos no controle social. Após perder o cartão de crédito, sua proprietária passou a receber notificações do banco de compras realizadas. Ao verificar os locais das transações, ela conseguiu identificar o endereço de um dos estabelecimentos, foi até o local e obteve as imagens das câmeras de segurança que mostravam a placa do carro do suspeito. Com essa informação, ela acionou a polícia, que localizou o homem e o levou à delegacia. 1

Esse caso ilustra algumas características fundamentais da sociedade de controle: a descentralização, o caráter contínuo e não perceptível do controle. A descentralização fica evidente, pois a identificação do infrator não ocorreu dentro de um espaço específico, mas sim a partir de diversas etapas que envolveram diferentes dispositivos e locais. Isso demonstra que o controle está em qualquer lugar, funcionando de maneira distribuída. Seu caráter contínuo também é evidente no funcionamento dos dispositivos, como o cartão de crédito e as câmeras de segurança, que registraram tudo o que acontecia, gerando informações que poderiam ser utilizadas a qualquer momento. Além disso, o controle se deu de maneira não perceptível para o infrator, que provavelmente não sabia que seria rastreado e monitorado por uma rede de dispositivos interligados.

Modulação

Outro conceito fundamental para compreender a sociedade de controle como analisada por Deleuze é o de “modulação”. O filósofo escreveu o seguinte:

“Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro.” 2

O que isso quer dizer? Em primeiro lugar, precisamos entender o que significa dizer que “os confinamentos são moldes”. Deleuze está se referindo aos espaços descritos por Foucault, como escolas, prisões e prisões, que impõem uma forma específica e fixa de controle sobre as pessoas. Esses espaços funcionam como “moldes” porque as regras e normas são aplicadas de maneira uniforme, sem levar em consideração as particularidades dos indivíduos. Cada pessoa dentro desses espaços é tratada de acordo com um padrão rígido, que visa moldar comportamentos de acordo com as exigências da instituição. Pense nas normas de uma fábrica, por exemplo: os trabalhadores devem seguir horários para entrar, sair e fazer pausas, todos devem realizar tarefas específicas de acordo com instruções previamente definidas, e há uma hierarquia clara que determina como cada um deve se comportar dentro do ambiente de trabalho. Essas regras são aplicadas igualmente a todos os funcionários, garantindo que o comportamento de todos seja moldado para atender aos objetivos de produtividade da fábrica. 

Em contraste, na sociedade de controle há uma “modulação”, que se refere a algo flexível e adaptável. Diferente do molde fixo da sociedade disciplinar, a modulação ajusta continuamente as regras e os métodos de controle de acordo com o comportamento das pessoas e as circunstâncias. Isso significa que ele se adapta, mudando de acordo com as ações dos indivíduos e os contextos em que estão inseridos.

Deleuze cita como um exemplo desse fenômeno a definição dos salários em muitas empresas. Considere o salário de um funcionário de um banco: o valor pode ser influenciado pelo número de seguros vendidos, pela participação nos lucros, pela quantidade de cursos de capacitação realizados e até mesmo pela avaliação da qualidade do atendimento reportada pelos clientes. Dessa forma, nem mesmo o salário é algo fixo, mas resultado de ajustes constantes. Como consequência, o funcionário é submetido a um estado de incerteza e adaptação contínua, onde o valor do seu trabalho é sempre redefinido com base em diferentes critérios e situações.

Esse mesmo sistema pode ser visto em ação em uma plataforma de streaming de músicas. Imagine uma plataforma que não obriga diretamente o usuário a permanecer conectado e ouvindo músicas, mas usa diversos mecanismos para manter seu engajamento. O sistema de recomendação, por exemplo, ajusta as músicas sugeridas de acordo com os hábitos de escuta do usuário, tentando sempre oferecer algo que desperte seu interesse e o faça continuar usando a plataforma. Além disso, as playlists personalizadas e as notificações de novos lançamentos são estratégias que se adaptam ao comportamento de cada usuário, modulando continuamente a experiência para maximizar o tempo de uso. Dessa forma, o controle se dá de maneira sutil, mantendo o usuário engajado sem uma imposição explícita, mas sim através de incentivos cuidadosamente ajustados ao seu perfil e interesses.

Liberdade

Na sociedade disciplinar, as restrições à liberdade são claras e visíveis, pois as pessoas são obrigadas a seguir regras rígidas dentro de instituições específicas. Pense, por exemplo, em uma escola: os estudantes precisam estar em sala de aula durante horários determinados, seguir instruções de professores e se comportar de acordo com regras explícitas. Na prisão, o controle é ainda mais severo, impondo horários fixos e limitando completamente a liberdade de movimento. Essas instituições estabelecem exatamente o que cada pessoa pode ou não fazer, criando um ambiente onde a liberdade individual é constantemente suprimida em nome da ordem e disciplina.

Em contraste, na sociedade de controle,  isso é mais sutil e imperceptível, dando às pessoas a sensação de liberdade ao oferecer diferentes opções que parecem estar sob sua escolha. Vamos considerar os três exemplos que analisamos até agora: o homem que usou o cartão que não era seu, os trabalhadores de um banco com salário flexível e o usuário de uma plataforma de streaming. Nos três casos, o controle não se exerce por meio de proibições, mas sim de forma adaptativa e indireta. As pessoas têm a impressão de fazer escolhas livres, como o trabalhador que escolhe vender mais seguros ou participar de cursos para melhorar seu salário, ou o usuário da plataforma de streaming que escolhe ouvir as músicas recomendadas. No entanto, essas opções são cuidadosamente moduladas para direcionar comportamentos e manter as pessoas com o comportamento que se espera delas, fazendo com que o direcionamento do comportamento aconteça sem que percebam claramente sua presença. 

Referências

DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2008.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Petropolis: Vozes, 2014.

G1. Homem é levado a delegacia após gastar R$ 750 em cartão de crédito por aproximação achado em rua de Fortaleza. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2021/07/06/homem-e-preso-apos-gastar-r-750-em-cartao-de-credito-por-aproximacao-achado-em-rua-de-fortaleza.ghtml>. Acesso em: 21 out. 2024.