O rei-filósofo de Platão
Por Chris Lüders: https://dribbble.com/chrislueders
A ideia de rei-filósofo foi apresentada por Platão em um livro chamado A República. Ele acreditava que as desgraças humanas só iriam acabar quando os filósofos se tornassem reis ou os reis se tornassem filósofos. A ideia de Platão se tornou a inspiração para críticas à democracia e para a defesa de um tipo de governo aristocrático em que apenas aqueles com maior conhecimento deveriam governar.
Platão viveu em Atenas, na Grécia, no século IV a.C e, nesta cidade, as decisões eram tomadas em uma assembleia periódica na qual todos os cidadãos podiam participar. Novas propostas de leis e medidas eram discutidas e depois aprovadas através da votação de todos. Porém, o filósofo foi um crítico contundente dessa forma de governo. Pensava que o governo de uma cidade exigia conhecimento especializado e por isso nem todas as pessoas eram aptas a governar.
No livro A República, para ilustrar o problema da democracia, Platão pede que imaginemos o seguinte cenário em um navio:
“Os marinheiros estão em disputa sobre o governo do navio, convencido cada qual de que tem direito a assumir o leme, sem jamais ter aprendido a arte de timoneiro nem poder indicar quem foi seu mestre ou a ocasião em que estudou; muito ao contrário, asseveram que isso não é matéria de estudo e, o que mais é, estão dispostos a fazer em pedaços quem quer que os contradiga. Esses sujeitos rodeiam o comandante, instando com ele e empenhando-se para por todos os meios para que lhes entregue o timão; e sucede que, não logrando persuadi-lo e vendo que outros lhes são preferidos, dão morte a estes e os lançam pela borda, embotam os sentidos do honrado capitão com mandrágora, vinho ou qualquer coisa e se põem a mandar no navio apoderando-se de tudo que nele existe.1”
Esse cenário caótico, pensa Platão, é o que vemos nas democracias. Uma disputa entre pessoas que afirmam não ser necessário conhecimento para governar uma cidade e lutam para governá-la.
Platão leva adiante essa comparação entre uma cidade e um navio e pede para pensarmos nas seguintes questões: viajaríamos em um navio cujo capitão diz não ter os conhecimentos necessários para pilotá-lo? Deixaríamos uma pessoa que não tem conhecimento de medicina fazer uma cirurgia? E porque aceitamos que uma pessoa ignorante dos temas relevantes governe uma cidade ou um país?
Vamos fazer uma comparação entre um médico e um governo. O trabalho do médico, ao longo de um ano, afeta a vida de centenas de pessoas, talvez milhares. Já o governo de uma cidade grande ou de um país, no mesmo período, afeta de forma muito mais profunda a vida de milhões de pessoas. Se compararmos a complexidade e quantidade de decisões tomadas por cada um, os números do governo também serão superiores. Um governo toma milhares de decisões que afetam saúde, emprego, renda, educação, trabalho, enfim, todos os aspectos da vida de uma pessoa. Se o médico precisa de conhecimento sobre o ser humano, biológico, químico e psicológico, o governo precisa saber isso e muito mais. Dada a abrangência das decisões, envolve conhecimento de economia, história, geografia, filosofia, sociologia, medicina, biologia, química, física, relações internacionais e dezenas de outras áreas.
Portanto, pensa Platão, assim como exigimos que as pessoas que são nossos médicos, pilotos, enfermeiros, professores, tenham conhecimento sobre aquilo que se propõe fazer, devemos querer que o governo das nossas cidades também tenha conhecimento especializado nas mais diversas áreas relevantes para sua administração.
Críticas à ideia de rei-filósofo
A ideia platônica de que os filósofos deveriam governar as sociedades não fez muito sucesso em seu tempo. No entanto, seus pressupostos estão presentes em diferentes críticas à democracia e regras eleitorais das modernas democracias representativas.
No Brasil, por exemplo, os analfabetos só conquistaram o direito de votar em 1985, quase 100 anos depois da proclamação da república. A exigência foi introduzida em 1881 com a Lei Saraiva. Desde então, ficaram proibidos de votar as pessoas que não fossem alfabetizadas. Na época de sua introdução, isso significava 80% da população brasileira. A lei foi proposta pelo advogado e deputado Ruy Barbosa, sob o argumento de que “escravos, mendigos e analfabetos não deveriam votar porque careciam de ilustração e patriotismo e não sabiam identificar o bem comum”.
Ao longo da história das discussões sobre a democracia, diferentes críticas foram apresentadas à ideia de que pessoas comuns, sem determinados conhecimentos resultados da educação formal, são capazes de governar. Um deles foi desenvolvido no século XIX, por John Stuart Mill, em um livro chamado Considerações sobre o governo representativo.
Escrito no contexto de debates sobre a extensão do direito ao voto no governo da Inglaterra no século XIX, Mill parte do seguinte pressuposto:
“os direitos e interesses de todas as pessoas só estão certos de não serem ignorados quando a própria pessoa interessada é capaz de defendê-los e está habitualmente disposta a fazê-lo” 2
ou, em palavras um pouco diferentes,
“os seres humanos só estão a salvo dos maus atos de seus semelhantes na medida em que são capazes de defenderem a si mesmos”.2
Partindo desse princípio e considerando o caso do voto dos analfabetos, Mill diria que uma sociedade só seria capaz de garantir o bem comum permitindo que todos participem na definição de prioridades políticas. Parace bastante razoável esse ponto se pensarmos que as pessoas analfabetas teriam muito mais interesse em promover uma educação básica para toda a população do que a elite que já é alfabetizada. Consequentemente, ao ser excluída do governo, não será capaz de defender os próprios interesses e terá que contar com a boa vontade de pessoas que não passam pelas mesmas dificuldades na vida e não terão o mesmo sentido de urgência para o problema ou talvez até nem vejam o analfabetismo da população como um problema.
Considerando esse argumento, podemos notar que as divergências sobre quem deve ter o direito de participar do governo passam por questões filosóficas mais básicas: como podemos conhecer a realidade que nos cerca? Como determinar o bem comum? Nossa posição social influencia o que consideramos bem comum? Podemos saber o que é melhor para os outros? Questões que saem do âmbito da política e envolvem a epistemologia e a ética.
Referências
Por 100 anos, analfabeto foi proibido de votar no Brasil — Senado Notícias
Mill, John Stuart. Considerações sobre o governo representativo. Brasília: Editora Universidade de Brrasília.
Platão. A República. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.