Thomas Morus e a pena de morte
Utopia é um livro de Thomas Morus (1480-1535) que apresenta ao leitor uma sociedade imaginária chamada Utopia. Essa é uma sociedade ideal, que, através de suas instituições, foi capaz de solucionar uma série de problema sociais que assolavam a Inglaterra do século XVI.
Morus nos fala de Utopia através de Rafael Hitlodeu, um português que supostamente viajou para o novo mundo com Américo Vespúcio e permaneceu durante alguns anos entre o povo utopiano. Aí pode conhecer seus costumes, leis e instituições, das quais fala com propriedade.
Um dos temas do livro de Morus é o problema da violência que afetava a Inglaterra nesse período. Durante o século XVI a lã passou a ter uma importância crescente na economia Inglesa. Com preços elevados, as terras passaram a ser usadas de preferência para pastagens ao invés do cultivo de alimentos. A consequência disso foi uma redução da demanda por trabalho, o desemprego e o crime.
Morus coloca na boca de Rafael Hitlodeu a seguinte crítica às leis destinadas a resolver esse problema:
O acaso me fez encontrar um dia, à mesa desse prelado, um leigo reputado como douto legista – Este homem, não sei a que propósito, se pôs a cumular de louvores a rigorosa justiça exercida contra os ladrões. Narrava gostosamente como eles eram enforcados, aqui e ali, às vintenas, na mesma forca.
Apesar disso, acrescentava, vejam que fatalidade! Mal escapam da forca dois ou três desses bandidos, e, no entanto, na Inglaterra, eles formigam por toda parte!
Com a liberdade de palavra que gozava na casa do cardeal, disse eu, então: Nada disso devia surpreender-vos. Neste caso a morte é uma pena injusta e inútil; é bastante cruel para punir o roubo, mas bastante fraca para impedi-lo. O simples roubo não merece a forca, e o mais horrível suplício não impedirá de roubar o que não dispõe de outro meio para não morrer de fome. Nisto, a justiça de Inglaterra e de muitos outros países se assemelha aos mestres que espancam os alunos em lugar de instruí-los. Fazeis sofrer aos ladrões pavorosos tormentos; não seria melhor garantir a existência a todos os membros da sociedade, a fim de que ninguém se visse na necessidade de roubar, primeiro, e de morrer, depois?
O que leva Rafael Hitlodeu a condenar a ineficácia da pena de morte e destacar o fato de que são certas condições sociais que geram o tipo de comportamento criminoso é sua experiência de vida entre o povo utopiano. Aí, em função da boa organização das instituições, ninguém é obrigado a roubar primeiro e, depois, morrer.
Mas quais exatamente são essas instituições? O que tem de diferente a sociedade de Utopia em relação à Inglaterra do século de Morus?
Essas são duas sociedades completamente diferentes, mas para o assunto em questão basta compreendermos como funcionava a economia de Utopia.
A sociedade de Utopia tem uma economia basicamente rural, como a Europa do século de Morus. A diferença está sobretudo na propriedade da terra. Enquanto na última a terra é distribuída desigualmente entre vários proprietários, o que faz com que uns se apropriem de uma parcela grande e outros fiquem sem nada, em Utopia a terra é propriedade comum. Ou seja, nenhum cidadão em particular é dono de uma pedaço de terra. Essa é uma propriedade pública, tal como aquilo que chamamos hoje de empresa estatal.
Assim como não existe propriedade privada de terras, em Utopia também não existe dinheiro ou salário em troca de trabalho. Como é possível, então, que as pessoas trabalhem e produzam bens de consumo? A organização econômica da sociedade é bastante simples. Todas as pessoas são obrigadas a trabalhar durante dois anos como agricultoras, cultivando o alimento que será consumido pela sociedade. Aqueles que desejarem se ocupar da agricultura durante toda a vida podem fazer isso. Já aqueles que preferirem outro trabalho, tem a oportunidade de escolher uma entre várias profissões disponíveis em Utopia. O fruto de seu trabalho não será remunerado com um salário, já que dinheiro não existe nessa sociedade. Ao invés disso, tudo aquilo que é produzido (alimentos, produtos manufaturados) estará disponível em feiras públicas onde qualquer pessoa pode chegar e pegar o que quiser.
Portanto, em Utopia todas as pessoas estão trabalhando em alguma função útil para a sociedade e tem direito de receber aquilo que for necessário para seu sustento. Como consequência, não há desemprego, miséria e, além disso, não é necessário que algumas pessoas sejam condenadas a vida toda à trabalhos desagradáveis e maçantes enquanto outras permanecem no ócio. Em utopia todas as pessoas trabalham apenas seis horas por dia e todos devem participar nos trabalhos agrícolas, numa espécie de revezamento.
Como já deve ter concluído o leitor, é uma sociedade comunista e igualitária a resposta de Morus ao problema da violência na Inglaterra. Como o motivo principal, segundo nosso autor, para haver crimes é a miséria e a falta de trabalho, muito mais efetivo do que matar continuamente pessoas que são obrigadas a roubar é criar uma sociedade em que ninguém seja miserável.
É assim que, ao descrever uma sociedade imaginária, Morus critica a sociedade inglesa do século XVI e aponta possíveis soluções. É uma dupla injustiça com aqueles que são obrigados a roubar e, em seguida, condenados à morte, porque seu comportamento não é uma fatalidade, como se fosse uma doença, em relação à qual nada é possível ser feito para prevenir. Pelo contrário, como pretende mostrar Morus, é possível, através mudanças nas instituições, e em particular dos direitos de propriedade sobre a terra, alterar essa situação. E é responsabilidade daqueles que estão no poder fazer ou deixar de fazer algo nesse sentido.
Em que medida Morus tem razão? Em que medida problemas sociais como a violência são provocados por instituições sociais e não, como muitos certamente pensam, por uma natureza humana com uma maldade inata? O que podemos acrescentar, hoje, após tantos progressos no conhecimento, às ideias desse filósofo do século XVI?