A diferença entre mito e filosofia segundo Karl Popper
Introdução
O trecho apresentado é extraído do livro “Conhecimento Objetivo”, de Karl Popper. Neste texto, Popper examina a transição no pensamento grego antigo da aceitação dogmática dos mitos para uma abordagem mais crítica e questionadora da verdade e do conhecimento.
Popper argumenta que o elemento distintivo da filosofia grega não foi simplesmente a substituição dos mitos por teorias mais “científicas”, mas a adoção de uma nova atitude crítica em relação aos próprios mitos. Esta mudança de atitude envolveu a transformação da tradição de preservar doutrinas inalteradas para uma tradição de questionar e criticar essas doutrinas.
Popper destaca como figuras importantes como Anaximandro e Anaxímenes, discípulos de Tales, exemplificam essa nova atitude ao divergirem conscientemente das teorias de seus mestres. Isso indica uma evolução na tradição filosófica, onde a crítica e o questionamento não apenas eram permitidos, mas encorajados como parte essencial do processo de aprendizagem e descoberta.
Texto de Popper
O que é novo na filosofia grega, o que é acrescentado de novo a tudo isso, parece-me consistir não tanto na substituição dos mitos por algo de mais “científico”, mas sim em uma nova atitude em relação aos mitos. Parece-me ser meramente uma consequência dessa nova atitude o fato de que seu caráter começa então a mudar.
A nova atitude que tenho em mente é a atitude crítica. Em lugar de uma transmissão dogmática da doutrina (na qual todo o interesse consiste em preservar a tradição autêntica) encontramos uma tradição crítica da doutrina. Algumas pessoas começam a fazer perguntas a respeito da doutrina, duvidam de sua veracidade, de sua verdade.
A dúvida e a crítica existiram certamente antes disso. O que é novo, porém, é que a dúvida e a crítica tornam-se agora, por sua vez, parte da tradição da escola. Uma tradição de caráter superior substitui a preservação tradicional do dogma. Em lugar da teoria tradicional, do mito, encontramos a tradição das teorias que criticam, que, em si mesmas, de início, pouco mais são do que mitos. É apenas no decorrer dessa discussão crítica que a observação é adotada como uma testemunha.
Não pode ser por mero acidente que Anaximandro, discípulo de Tales, desenvolveu uma teoria que diverge explícita e conscientemente da de seu mestre, e que Anaxímenes, discípulo de Anaximandro, tenha divergido de modo igualmente consciente da doutrina de seu mestre. A única explicação parece ser a de que o próprio fundador da escola tenha desafiado seus discípulos a criticarem sua teoria e que eles tenham transformado esta nova atitude crítica de seu mestre em uma nova tradição.
Questões para estudo do texto
- Qual a conclusão defendida pelo autor do texto?
- Qual a premissa utilizada para sustentar essa conclusão?
- Popper defende que a atitude crítica, com o surgimento da filosofia, passou a fazer parte da própria escola de pensamento na qual o filósofo se encontrava vinculado. Que o mestre, ao ensinar, incentivava seu aluno a questionar as ideias que lhe transmitia.
- Como evidência dessa conclusão, Popper lembra o caso dos primeiros filósofos, Tales, Anaxímenes e Anaximandro, todos pertencentes a mesma escola e ao mesmo tempo com concepções bastante distintas. Segundo ele, a única explicação para essa divergência é o incentivo dado pelo mestre para que o aluno questionasse as ideias apresentadas.
Referência
Popper, Karl. “O balde e o holofote” (apêndice), in Conhecimento objetivo. São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1974.