Trecho das Meditações Metafísica, de René Descartes, sobre a razão como fonte de conhecimento
“Medições Metafísicas”, de René Descartes, publicado inicialmente em 1641, é uma obra fundamental na filosofia moderna, estabelecendo a base para a epistemologia e a metafísica contemporâneas. Descartes, um filósofo e matemático francês, é frequentemente chamado de pai da filosofia moderna. Sua abordagem radicalmente nova para o conhecimento e a realidade foca na dúvida sistemática e na busca por certezas incontestáveis.
Neste trecho específico, Descartes explora a natureza da realidade e do conhecimento a partir de um simples pedaço de cera. Ele começa por descrever as propriedades sensíveis da cera, como sua cor, forma, tamanho, cheiro, textura e som. No entanto, quando a cera é exposta ao fogo, essas propriedades mudam completamente, levando Descartes a questionar o que realmente sabemos sobre a cera. Esta reflexão leva ao insight de que as propriedades sensíveis da cera são percebidas não apenas pelos sentidos, mas principalmente pela mente ou pelo entendimento.
Descartes conclui que a verdadeira compreensão da cera, ou de qualquer objeto, não vem através dos sentidos ou da imaginação, mas do intelecto. A percepção clara e distinta é alcançada pelo pensamento, não pela experiência sensorial. Este trecho é um exemplo clássico da abordagem cartesiana à filosofia, onde ele procura estabelecer uma base firme para o conhecimento verdadeiro, começando com o que pode ser conhecido clara e distintamente pela mente.
Texto
Comecemos pela consideração das coisas mais comuns e que acreditamos compreender mais distintamente, a saber, os corpos que tocamos e que vemos. Não pretendo falar dos corpos em geral, pois essas noções gerais são ordinariamente mais confusas, porém de qualquer corpo em particular. Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba de ser tirado da colmeia: ele não perdeu ainda a doçura do mel que continha, retém ainda algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza são patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele batermos, produzirá algum som. Enfim, todas as coisas que podem distintamente fazer conhecer um corpo encontram-se neste.
Mas eis que, enquanto falo, é aproximado do fogo: o que nele restava de sabor exala-se, o odor se esvai, sua cor se modifica, sua figura se altera, sua grandeza aumenta, ele torna-se líquido, esquenta-se, mal o podemos tocar e, embora nele batamos, nenhum som produzirá. A mesma cera permanece após essa modificação? Cumpre confessar que permanece: e ninguém o pode negar. O que é, pois, que se conhecia deste pedaço de cera com tanta distinção? Certamente não pode ser nada de tudo o que notei nela por intermédio dos sentidos, posto que todas as coisas que se apresentavam ao paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao tato, ou à audição, encontram-se mudadas e, no entanto, a mesma cera permanece. Talvez fosse como penso atualmente, a saber, que a cera não era nem essa doçura do mel, nem esse agradável odor das flores, nem essa brancura, nem essa figura, nem esse som, mas somente um corpo que um pouco antes me aparecia sob certas formas e que agora se faz notar sob outras. Mas o que será, falando precisamente, que eu imagino quando a concebo dessa maneira?
Consideremo-lo atentamente e, afastando todas as coisas que não pertencem à cera, vejamos o que resta. Certamente nada permanece senão algo de extenso, flexível e mutável. Ora, o que é isto: flexível e mutável? Não estou imaginando que esta cera, sendo redonda, é capaz de se tornar quadrada e de passar do quadrado a uma figura triangular? Certamente não, não é isso, posto que a concebo capaz de receber uma infinidade de modificações similares e eu não poderia, no entanto, percorrer essa infinidade com minha imaginação e, por conseguinte, essa concepção que tenho da cera não se realiza através de minha faculdade de imaginar.
E, agora, que é essa extensão? Não será ela igualmente desconhecida, já que na cera que se funde ela aumenta e fica ainda maior quando está inteiramente fundida e muito mais ainda quando o calor aumenta? E eu não conceberia claramente e segundo a verdade o que é a cera, se não pensasse que é capaz de receber mais variedades segundo a extensão do que jamais imaginei.
É preciso, pois, que eu concorde que não poderia mesmo conceber pela imaginação o que é essa cera e que somente meu entendimento é quem o concebe; digo este pedaço de cera em particular, pois para a cera em geral é ainda mais evidente. Ora, qual é essa cera que não pode ser concebida senão pelo entendimento ou pelo espírito? Certamente é a mesma que vejo, que toco, que imagino e a mesma que conhecia desde o começo. Mas o que é de notar é que sua percepção, ou a ação pela qual é percebida, não é uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação, e jamais o foi, embora assim o parecesse anteriormente, mas somente uma inspeção do espírito, que pode ser imperfeita e confusa, como era antes, ou clara e distinta, como é presentemente, conforme minha atenção se dirija mais ou menos às coisas que existem nela e das quais é composta.
DESCARTES, René. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 97.