Trecho do Ensaio Acerca do Entendimento Humano, de Locke, sobre a origem das ideias
“Ensaio sobre o Entendimento Humano”, escrito por John Locke e publicado inicialmente em 1689, é uma obra fundamental no campo da epistemologia, a filosofia do conhecimento. Locke desafia a noção pré-existente de ideias inatas, argumentando que o conhecimento humano é adquirido principalmente através da experiência. Seu trabalho marcou uma virada significativa no pensamento filosófico e influenciou fortemente o desenvolvimento do empirismo, uma escola de pensamento que enfatiza a importância da experiência sensorial na formação do conhecimento.
Neste trecho específico, Locke desenvolve sua teoria do empirismo, explicando que todas as ideias humanas derivam de duas fontes fundamentais: a sensação e a reflexão. Ele compara a mente a um “papel em branco”, sugerindo que ela é moldada e preenchida pelas experiências do indivíduo. A sensação se refere às informações que recebemos através dos nossos sentidos do mundo exterior, enquanto a reflexão é o processo pelo qual percebemos e consideramos as operações da nossa própria mente. Locke argumenta que é através dessa combinação de experiências externas e introspecção que adquirimos todo o nosso conhecimento e ideias.
Texto
Todas as ideias derivam da sensação ou da reflexão. Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer ideias: como ela será suprida? De onde lhe vem este vasto estoque, que a ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou nela com uma variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra, da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos sensíveis externos quanto nas operações internas de nossas mentes, que são por nós mesmos percebidas e refletidas, nossa observação supre nossos entendimentos com materiais do pensamento. Dessas duas fontes de conhecimento jorram todas as nossas ideias, ou as que possivelmente teremos.
Primeiro, nossos sentidos, familiarizados com os objetos sensíveis particulares, levam para a mente várias e distintas percepções das coisas, segundo os vários meios pelos quais aqueles objetos os impressionaram. Recebemos assim as ideias de amarelo, branco, quente, frio, mole, duro, amargo, doce e de todas as ideias que denominamos de qualidades sensíveis. Quando digo que os sentidos levam para a mente, entendo com isso que eles retiram dos objetos externos para a mente o que lhes produziu essas percepções. A esta grande fonte da maioria de nossas ideias, bastante dependente de nossos sentidos, dos quais se encaminharam para o entendimento, denomino sensações.
Segundo, a outra fonte pela qual a experiência supre o entendimento com ideias é a percepção das operações de nossa própria mente, que se ocupa das ideias que já lhe pertencem. Tais operações, quando a alma começa a refletir e a considerar, suprem o entendimento com outra série de ideias que não poderia ser obtida das coisas externas, tais como a percepção, o pensamento, o duvidar, o crer, o raciocinar, o conhecer, o querer e todos os diferentes atos de nossas próprias mentes. Tendo disso consciência, observando esses atos em nós mesmos, nós os incorporamos em nossos entendimentos como ideias distintas, do mesmo modo que fazemos com os corpos que impressionam nossos sentidos. Toda gente tem esta fonte de ideias completamente em si mesma; e embora não a tenha sentido como relacionada com os objetos externos, provavelmente ela está, e deve propriamente ser chamada de sentido interno. Mas, como denomino a outra de sensação, denomino esta de reflexão. (…)
Afirmo que estas duas, a saber, as coisas materiais externas, como objeto da sensação, e as operações de nossas próprias mentes, como objeto da reflexão, são, a meu ver, os únicos dados originais dos quais as ideias derivam. O termo operações é usado aqui em sentido lato, compreendendo não apenas as ações da mente sobre suas ideias, mas também certos tipos de paixões que às vezes nascem com elas, tais como a satisfação ou inquietude que nascem de qualquer pensamento.
Locke, John. Ensaio sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 159-160.