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Descartes, as regras do método

Estava então na Alemanha, para onde me haviam chamado as guerras que ainda ali não terminaram, e, quando voltava da coroação do Imperador para o exército, o começo do inverno me deteve num lugar onde, não achando conversa que me divertisse e além disso não tendo, felizmente, cuidados ou paixões que me perturbassem, ficava o dia inteiro trancado sozinho num quarto com estufa, onde tinha todo o tempo para me entreter com meus pensamentos. Entre os quais um dos primeiros que me ocorreu foi considerar que muitas vezes não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças e feitas pelas mãos de diversos mestres quanto naquelas em que apenas um trabalhou. Assim, vemos que as construções iniciadas e concluídas por um único arquiteto costumam ser mais belas e bem ordenadas que aquelas que muitos trataram de reformar aproveitando velhas paredes construídas para outros fins. […]

Mas, como um homem que caminha sozinho e nas trevas, decidi avançar tão lentamente e ser tão circunspecto em tudo que, se progredia muito pouco, evitava pelo menos cair. Não quis sequer começar rejeitando completamente qualquer das opiniões que se infiltraram outrora em minha crença sem terem sido aí introduzidas pela razão antes de empregar bastante tempo no projeto da obra que empreendia e na busca do verdadeiro método para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que o meu espírito fosse capaz.

[…] E como a multiplicidade de leis fornece muitas vezes desculpas aos vícios, de modo que um Estado é bem mais regrado se, tendo bem poucas, elas são estritamente observadas, assim eu julguei que, em vez do grande número de preceitos de que se compõe a lógica, me bastariam os quatro seguintes, contanto que tomasse a firme e constante resolução de não deixar de observá-los uma vez sequer.

O primeiro era não tomar jamais coisa alguma por verdadeira a não ser que a conhecesse evidentemente como tal: quer dizer, evitar cautelosamente a precipitação e a prevenção; e só incluir em meus juízos o que se me apresentasse ao espírito de modo tão claro e nítido que não tivesse como colocá-lo em dúvida.

O segundo, dividir cada dificuldade que examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e necessárias para melhor resolvê-las.

O terceiro, conduzir meus pensamentos de forma ordenada, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais complexos; e supondo mesmo uma ordem entre aqueles que de modo algum precedem naturalmente uns aos outros.

E o último, fazer sempre levantamentos tão completos e inspeções tão gerais que tivesse a certeza de nada omitir.

Essas longas cadeias de raciocínios, bem simples e fáceis, de que os geômetras costumam se servir para chegar às mais difíceis demonstrações, deram-me a oportunidade de imaginar que todas as coisas que podem cair sob o conhecimento dos homens seguem-se umas às outras da mesma maneira e que, contanto apenas que se evite tomar por verdadeira alguma que não o seja e que se respeite sempre a ordem exigida para deduzir umas das outras, não pode haver nenhuma tão distante que por fim não se alcance nem tão oculta que não se descubra.

Descartes, Discurso do método