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O amor é uma falácia, por Max Shulman

- 16 min leitura

Eu era frio e lógico. Sutil, calculista, perspicaz, arguto  e astuto – era tudo isso – e acreditem – modesto.  Tinha o cérebro poderoso como um motor de Fórmula  1, preciso como uma balança de farmácia, penetrante  como um bisturi. E tinha – imaginem só – apenas 18  anos. Não é comum ver alguém tão jovem com um  intelecto tão gigantesco. Tomem, por exemplo, o caso  do meu companheiro de quarto na universidade,  Peter Johnson.

Mesma idade, mesma formação, mas burro como  uma vaca. Um bom sujeito, compreendam, mas sem  nada lá em cima. Do tipo emocional. Instável,  impressionável. Pior que tudo, dado a manias. Eu  afirmo que a mania é a própria negação da razão.  Deixar-se levar por qualquer nova moda que apareça,  entregar-se a alguma idiotice só porque os outros a  seguem, isto, para mim, é o cúmulo da insensatez.  Peter, no entanto, não pensava assim.

Certa tarde, encontrei-o deitado na cama com tal  expressão de sofrimento no rosto que o meu  diagnóstico foi imediato: Apendicite!

– Não se mexa. Não tome laxante. Vou chamar o  médico.

– Marmota… – balbuciou ele.

– Marmota? – disse eu interrompendo minha corrida. – Quero um casaco de pele de marmota – gemeu ele.

Percebi que o seu problema não era físico, mas  mental.

– Por que você quer um casaco de pele de marmota?

– Eu devia ter adivinhado – gritou ele, dando tapas na  própria cabeça.

– Devia ter adivinhado que esta moda ia voltar. Como  um idiota, gastei todo o meu dinheiro em livros para  as aulas e agora não posso comprar um casaco de  pele de marmota!

– Quer dizer – perguntei incrédulo – que estão mesmo  usando casacos de pele de marmota outra vez?

– Todas as Pessoas Importantes da Universidade  estão. Onde você tem andado?

– Na biblioteca, lógico! – respondi, citando um lugar  não muito frequentado pelas Pessoas Importantes da  Universidade.

Ele saltou da cama e pôs-se a andar de um lado para o  outro do quarto.

– Preciso conseguir um casaco de pele de marmota. – Preciso!

– Por que, Peter? Veja a coisa de maneira racional.  Pense! Casacos de pele de marmota são anti higiênicos. Soltam pelos. Cheiram mal. Juntam ácaros.  Juntam pó. São pesados, são feios, são…

– Você não compreende – interrompeu ele com  impaciência. – É o que todos estão usando. Você não  quer andar na moda?

– Não – respondi sinceramente.

– Pois eu, sim! – declarou ele. – Daria tudo para ter  um casaco de pele de marmota. Tudo!

Aquele instrumento de precisão, meu poderoso  cérebro, começou a funcionar a todo vapor.

– Tudo? – perguntei, examinando seu rosto com os  olhos semicerrados.

– Tudo! – confirmou ele, em um tom dramático.

Alisei o queixo, pensativo. Eu, por acaso, sabia onde  encontrar um casaco de pele de marmota. Meu pai  usara um nos seus tempos de estudante; estava agora  esquecido dentro de um baú, no porão de nossa casa.  E, também por acaso, Peter tinha algo que eu queria.  Não era dele, exatamente, mas pelo menos ele tinha  alguns direitos sobre ela. Refiro-me à sua pequena,  Polly Stein.

Eu há muito desejava Polly Stein. Apresso-me a  esclarecer que meu desejo não era de natureza  emotiva. A moça, não há dúvidas, despertava paixões.  Era daquelas que decretavam feriado nacional por  onde quer que passasse. Todos paravam para vê-la  passar. Até mesmo (ou principalmente) as mulheres,  se corroendo de inveja… mas eu não era daqueles que  se deixam dominar pelo coração. Desejava Polly para  fins engenhosamente calculados e inteiramente  cerebrais.

Cursava eu o primeiro ano de Direito. Dali a algum  tempo estaria me iniciando na profissão. Eu sabia  muito bem a importância que tinha a esposa na vida e  na carreira de um advogado. Os advogados de  sucesso, segundo minhas observações, eram quase  sempre casados com mulheres bonitas, graciosas e  inteligentes. Com uma única exceção, Polly preenchia  perfeitamente todos esses requisitos.

Ela era linda. Graciosa também era. Por graciosa,  quero dizer, cheia de graças sociais. Finíssima! Tinha o  porte ereto, a naturalidade no andar e a elegância que  deixavam transparecer a melhor das linhagens. À  mesa, suas maneiras eram finíssimas. Eu já vira Polly  no barzinho da escola comendo a especialidade da  casa – um sanduíche que continha pedaços de carne  assada, molho, castanhas e repolho – sem nem sequer  umedecer os dedos.

Inteligente ela não era. Na verdade, tendia para o  oposto. Mas eu confiava que, sob minha tutela,  haveria de tornar-se brilhante. Pelo menos, valia a  pena tentar. Afinal de contas, é mais fácil fazer uma  moça bonita e burra ficar inteligente do que uma  moça feia e inteligente ficar bonita.

– Peter! – perguntei – você ama Polly Stein?

– Acho-a uma boa garota – respondeu – mas não sei  se chamaria isso de amor. Por quê?

– Você – continuei – tem alguma espécie de arranjo  formal com ela? Quero dizer, vocês saem  exclusivamente um com o outro?

– Não. Ficamos juntos, quase sempre, mas saímos os  dois com outros também. Por quê?

– Existe alguém – perguntei – algum outro homem de  quem ela goste de maneira especial?

– Que eu saiba, não. Por quê?

– Fiz que sim, com a cabeça, satisfeito.

– Em outras palavras, a não ser por você, o campo  está livre, é isto?

– Acho que sim, bolas. Que papo estranho é esse?

– Nada, nada – respondi com inocência, tirando minha  mala de dentro do armário.

– Onde é que você vai? – quis saber Peter. – Passar o fim-de-semana em casa.

Atirei algumas roupas dentro da mala.

– Escute – disse Peter, apegando-se com força ao meu  braço – em casa, será que você não poderia pedir  dinheiro ao seu pai, e me emprestar para comprar um  casaco de pelo de marmota?

– Posso até fazer mais do que isso – respondi,  piscando o olho misteriosamente. Volto na segunda.

Fechei a mala e saí. O final de semana demorou a  passar. Eu estava ansioso para encontrar Peter na  segunda.

– Olhe – disse a Peter, ao voltar na segunda-feira pela  manhã.

Abri a mala e mostrei o enorme objeto cabeludo e  fedorento que meu pai usara em seu tempo de  universidade.

– Santo Pai! – exclamou Peter, com reverência.  Mergulhou as mãos no pelo do casaco, e depois o  rosto.

– Santo Pai! – repetiu umas quinze ou vinte vezes. – Você gostaria de ficar com ele? – perguntei.

– Sim, sim! – gritou ele, apertando a coisa sebosa  contra o peito.

Em seguida, seus olhos tomaram um ar precavido. – O que você quer em troca?

– A sua namorada – disse eu, não desperdiçando as  palavras.

– Polly? – sussurrou Peter, horrorizado. – Você quer a  Polly?

– Isto mesmo… Ele jogou o casaco para longe. – Nunca! – declarou resoluto.

Dei de ombros.

– OK. Se você não quer andar na moda, o problema é  seu…

Sentei numa cadeira e fingi que lia um livro, mas  continuei espiando Peter, com o rabo dos olhos.  Aquele era um homem partido em dois. Primeiro

olhava para o casaco, com a expressão de uma criança  de rua à porta de um Mc Donalds. Depois dava-lhe as  costas e cerrava os dentes, altivo. Depois, voltava a  olhar para o casaco, com uma expressão ainda maior  de desejo no rosto. Depois, virava-se outra vez, mas  agora sem tanta resolução. Sua cabeça ia e vinha, o  desejo aumentando, a resolução “despencando”.  Finalmente não se virou mais; ficou olhando para o  casaco com pura lascívia. O desejo falara mais alto.

– Não é como se eu estivesse apaixonado por Polly – balbuciou. – Ou mesmo a namorando, ou coisa  parecida.

– Isso mesmo – murmurei.

– Afinal, Polly significa o que para mim, ou eu para  ela?

– Nada – respondi.

– Foi uma coisa banal. Nos divertimos um pouco, só  isso… ficamos, às vezes.

– Experimente o casaco – disse eu.

Ele obedeceu. O casaco cobria as orelhas e caía até os  sapatos. Ele parecia um monte de marmotas mortas.  Pensando bem, não tinha jeito das marmotas estarem  vivas.

– Serve perfeitamente. – disse, contente. Levantei da cadeira e perguntei, estendendo a mão: – Negócio feito?

– Feito – disse ele engolindo em seco e apertando a  minha mão.

Saí com Polly pela primeira vez na noite seguinte. O  primeiro programa teria o caráter de uma pesquisa  preparatória. Eu desejava avaliar o trabalho que me  esperava para elevar a sua mente ao nível desejado.  Levei-a para um jantar.

– Puxa, que jantar bacana! – disse ela, quando saímos  do restaurante. Fomos ao cinema.

– Puxa, que filme bacana! – disse ela, quando saímos  do cinema.

Levei-a para casa.

– Puxa, foi um programa bacana. – disse ela ao me  desejar boa noite.

Voltei para o quarto com o coração pesado. Eu  subestimara gravemente as proporções da minha  tarefa. A ignorância daquela moça parecia aterradora.  E não seria o bastante apenas instruí-la. Era preciso,  antes de tudo, ensiná-la a pensar. O empreendimento  a que eu me propusera era simplesmente gigantesco,  e a princípio me vi inclinado a devolvê-la a Peter. Mas  aí comecei a pensar nos seus dotes físicos generosos,  no olhar de inveja que ela despertava nos homens e  mulheres quando “desfilava” pelos corredores da  universidade, na maneira como entrava numa sala ou  segurava uma faca e um garfo, e aí, decidi tentar  novamente.

Procedi, como sempre, sistematicamente. Dei-lhe um  curso de Lógica. Acontece, que como estudante de  Direito, eu frequentava na ocasião aulas de Filosofia e

de Metodologia Científica, e portanto, tinha tudo na  ponta da língua.

– Polly – disse eu, quando a fui buscar para o nosso  segundo programa. Esta noite iremos até o parque  conversar.

– Oh, que bacana! – respondeu ela.

Uma coisa deve ser dita em favor da moça: seria difícil  encontrar alguém tão bem disposta para tudo.

Fomos até o parque, o local de encontros da  Universidade, nos sentamos debaixo de um velho  carvalho, e ela me olhou cheia de expectativa.

– Sobre o que vamos conversar? – perguntou. – Sobre Lógica.

Ela pensou durante alguns segundos e depois  sentenciou:

– Bacana! Bacana!

– A Lógica – comecei, limpando a garganta – é a  ciência do pensamento. Se quisermos pensar  corretamente, é preciso antes saber identificar as  falácias mais comuns da Lógica. É o que vamos  abordar hoje.

– Bacana! – exclamou ela, batendo as palmas de  alegria, com a mesma expressão de perspicácia que se  esperaria de uma foca diante da possibilidade de  ganhar um peixe. Fiz uma careta de desânimo, mas  segui em frente, com coragem.

– Vamos primeiro examinar uma falácia chamada  Dicto Simpliciter.

– Vamos – animou-se ela, piscando os olhos com  animação.

– Dicto Simpliciter quer dizer um argumento baseado  numa generalização não qualificada. Por exemplo: o  exercício é bom, portanto todos devem se exercitar.

– Eu estou de acordo – disse Polly, fervorosamente. – Quer dizer, o exercício é maravilhoso. Isto é,  desenvolve o corpo e tudo.

– Polly – disse eu, com ternura – esse argumento é  uma falácia. Dizer que o exercício é bom é uma  generalização não qualificada. Por exemplo: para  quem sofre do coração, o exercício é ruim. Muitas  pessoas têm ordens de seus médicos para não se  exercitarem. É preciso qualificar a generalização.  Deve-se dizer: o exercício é geralmente bom, ou é

bom pra maioria das pessoas. Senão, está se  cometendo um Dicto Simpliciter. Compreendeu?

– Não – confessou ela. – Mas isto é bacana. Quero  mais. Quero mais! Fala! Fala!

– Será melhor se você parar de puxar a manga do meu  casaco – disse eu e, quando ela parou, continuei…

– Em seguida, abordaremos uma falácia muito comum  chamada Generalização Apressada. Ouça com  atenção: você não sabe falar francês, eu não sei falar  francês, Peter Johnson não sabe falar francês. Devo  portanto concluir que ninguém na Universidade sabe  falar francês.

– É mesmo? – espantou-se Polly.- Ninguém? Nem  uma pessoa?

Reprimi a minha impaciência…

– É uma falácia, Polly. Essa generalização foi feita de  maneira apressada. Não há exemplos suficientes para  justificar essa conclusão.

Ela sorriu, encantadora… mas que cara de retardada – pensei.

– Você conhece outras falácias? – perguntou ela,  animada. – Isto é até melhor do que dançar!

– Esforcei-me por conter uma onda de desespero que  ameaçava me invadir. Não estava conseguindo nada  com aquela moça. Absolutamente nada! Mas não sou  outra coisa senão persistente. Quase teimoso.  Continuei …

– A seguir, vem o Post-Hoc. Ouça: não vamos levar Bill  conosco ao piquenique. Toda vez que ele vai junto,  começa a chover.

– Eu conheço uma pessoa exatamente assim. – exclamou Polly. Uma moça da minha cidade, Eula  Becker. Nunca falha. Toda a vez que ela vai junto a um  piquenique…

– Polly, interrompi com energia. – Isso é uma falácia.  Não é Eula Becker que causa a chuva. Ela não tem  nada a ver com a chuva. Você estará incorrendo em  Post-Hoc se puser a culpa na Eula Becker.

– Nunca mais farei isso. – prometeu ela contrita. – você está bravo comigo?

– Não, Polly. – suspirei – não estou bravo.

Talvez fosse mais fácil ensinar Lógica a um chimpanzé  – pensei…

– Então conte outra falácia – pediu Polly.

– Muito bem. Vamos experimentar as Premissas  Contraditórias. Se Deus pode fazer qualquer coisa,  então pode criar uma pedra tão pesada que Ele  mesmo não conseguirá levantar!

– É claro. – respondeu ela imediatamente.

– Mas, se Ele pode fazer tudo, então Ele também  pode levantar a pedra – exclamei.

– É mesmo – disse ela pensativa.

– Bem, então, acho que Ele não pode fazer a tal  pedra.

– Mas Ele pode fazer tudo – lembrei-lhe.

Ela coçou sua cabeça linda e vazia. Aquele cérebro  poderia ser vendido como “Zero Quilômetros”…  jamais fora usado!

– Estou confusa – admitiu.

– É claro que está. Quando as premissas de um  argumento se contradizem, não pode haver  argumento. Se existe uma força irresistível, não pode  existir um objeto irremovível. Compreendeu?

– Não – mas conte outra destas histórias bacanas.  Estou adorando! – disse Polly entusiasmada.

Consultei o relógio.

– Acho melhor pararmos por aqui. Levarei você para  casa, e lá você pensará no que aprendeu hoje.  Teremos outra sessão amanhã à noite.

Depositei-a no dormitório das moças, onde ela me  assegurou que a noitada fora realmente bacana, e  voltei completamente desanimado para o meu  quarto. Peter roncava sobre sua cama, com o casaco  de pele de marmota encolhido a seus pés como um  enorme animal cabeludo. Por alguns segundos,  brinquei com a ideia de acordá-lo e dizer que podia  ter sua namorada de volta.

Era evidente que meu projeto estava condenado ao  fracasso. Aquela moça tinha, simplesmente, uma  cabeça totalmente à prova de lógica.

Mas logo reconsiderei. Perdera uma noite, por que  não perder outra? Quem sabe se em alguma parte  daquela cratera de vulcão adormecido, que era a  mente de Polly, algumas “brasas” de inteligência  ainda estivessem vivas? Talvez, de alguma maneira,  eu ainda conseguisse abaná-las até que flamejassem…  As perspectivas não eram das mais animadoras, mas  acabei decidindo e tentei outra vez.

Sentado sob o mesmo carvalho, na noite seguinte,  disse:

– Nossa primeira falácia desta noite se chama Ad  Misericordiam.

Ela estremeceu de emoção.

– Ouça com atenção – comecei.

– Um homem vai pedir emprego. Quando o patrão  pergunta quais são as suas qualificações, o homem  responde que tem uma mulher e seis filhos em casa,  que a mulher é aleijada, as crianças não têm o que  comer, não têm o que vestir, nem o que calçar, a casa  não tem camas, não há carvão no porão e o inverno  se aproxima.

Uma lágrima desceu por cada uma das faces rosadas  de Polly.

– Isso é horrível, horrível! – soluçou, quase chorando.

– É horrível – concordei – mas não é argumento. O  homem não respondeu à pergunta do patrão sobre  suas qualificações. Em vez disso, tentou despertar a  sua compaixão. Cometeu a falácia do Ad

Misericordiam. Compreendeu?

– Você tem um lenço? – pediu ela, entre soluços.

Dei-lhe o lenço e fiz o possível para não gritar de  desespero, enquanto ela enxugava os olhos.

– A seguir – disse, controlando o tom da minha voz – discutiremos a Falsa Analogia. Eis um exemplo:  deviam permitir aos estudantes consultar seus livros  durante as provas. Afinal, os cirurgiões levam  radiografias para se guiarem durante uma operação,  os advogados consultam seus papéis durante um  julgamento, os construtores têm plantas e projetos  que os orientam na construção de uma casa. Por que,  então, não deixar que os alunos recorram a seus livros  durante uma prova?

– Pois olhe – disse ela entusiasmada – esta é a ideia  mais bacana que eu já ouvi na minha vida! Você é um  gênio!

– Polly – disse eu com impaciência – o argumento é  falacioso. Os cirurgiões, os advogados e os  construtores não estão fazendo testes para ver o que  aprenderam, e os estudantes sim. As situações são  completamente diferentes e não se pode fazer  analogia entre elas. Não tem jeito de comparar uma  situação com a outra, entendeu?

– Continuo achando a ideia bacana. – disse Polly.

– Bolas! – murmurei. E prossegui, persistente (fazendo  uma meia careta) . A seguir, tentaremos a falácia  Hipótese Contrária ao Fato.

– Ah! Essa parece ser boa – foi a reação de Polly.

– Ouça: se Madame Curie não deixasse, por acaso,  uma chapa fotográfica numa gaveta junto com uma  pitada de pechblenda, nós hoje não saberíamos da  existência do elemento químico Rádio. Graças a essa  descoberta, hoje sabemos o que é radioatividade!

– É mesmo, é mesmo! Brilhante! – concordou Polly,  sacudindo vigorosamente a cabeça.

– Você viu o filme? Eu fiquei louca com aquele filme.  Aquele ator, o Walter Pidgeon é tão bacana! Ele me  fez vibrar!

– Se você conseguir esquecer o Sr. Pidgeon por alguns  minutos – disse eu friamente – gostaria de lembrar  que o que eu disse é uma falácia. Madame Curie  poderia ter descoberto o Rádio de alguma outra  maneira. Talvez outra pessoa o descobrisse. Muita  coisa poderia acontecer. Não se pode partir de uma  hipótese baseada no acaso e tirar dela qualquer  conclusão lógica.

– Eles deveriam botar o Walter Pidgeon em mais  filmes – disse Polly. Eu quase não o vejo no cinema.  Ele é lindo!

A impaciência voltou a me torturar. Como um ser  humano pode ser tão ignorante? – pensei. Mais uma  tentativa! – decidi. Mas só mais uma. A ultima! Há um  limite ao que um homem pode suportar.

– A próxima falácia é chamada Envenenar o Poço. – Que bonitinho! – deliciou-se Polly.

– Dois homens vão começar um debate. O primeiro se  levanta e diz: “Meu oponente é um mentiroso  conhecido. Não é possível acreditar numa só palavra  do que ele disser”. Agora, Polly, pense bem. O que  está errado?

Vi-a enrugar a sua testa cremosa, concentrando-se.  De repente, um brilho de inteligência – o primeiro que  eu vira – surgiu em seus olhos.

– Não é justo! – disse ela com indignação – Isso não é  nada justo. Que chance tem o segundo homem se o  primeiro diz que é um mentiroso, antes mesmo dele  começar a falar?

– Exato! – gritei exultante. – Cem por cento exato!  Não é justo. O primeiro homem envenenou o poço  antes que os outros pudessem beber dele. Atou as

mãos do adversário antes da luta começar… Polly,  estou orgulhoso de você!

– Ora – murmurou ela, ruborizando de prazer.

– Como vê, minha querida, não é tão difícil. Só requer  concentração. É só pensar, examinar, avaliar. Venha,  vamos repassar tudo que aprendemos até agora.

– Vamos lá – disse ela, com um abano distraído de  mão. Animado pela descoberta de que Polly não era  uma cretina total, comecei uma longa e paciente  revisão de tudo que dissera até ali. Sem parar, citei  exemplos, apontei falhas, martelei “lógica” sem dar  tréguas. Era como cavar um túnel. A princípio, apenas  trabalho, suor e escuridão. Não tinha idéia de quando  veria a luz, ou mesmo se a veria. Mas insisti. Dei duro,  cavouquei até com as unhas, e finalmente fui  recompensado. Descobri uma fresta de luz. E a fresta  foi se alargando até que, finalmente, o sol jorrou para  dentro do túnel, clareando tudo. Polly finalmente  parecia ter sido apresentada ao “conhecimento”.

Levara cinco noites de trabalho forçado, mas valera a  pena. Eu transformara Polly em uma lógica, e a  ensinara a pensar. Minha tarefa chegara a bom termo.  Fizera dela uma mulher digna de mim. Somente agora  ela estava apta a ser minha esposa, uma anfitriã  perfeita para as minhas muitas mansões, uma mãe  adequada para meus filhos privilegiados.

Não se deve deduzir que eu não sentisse amor pela  moça. Muito pelo contrário. Na mitologia grega,  Pigmalião amava a mulher perfeita que moldara para  si; eu também amava a minha doce Polly, que moldei  com o suor do meu conhecimento. Decidi comunicar lhe os meus sentimentos no nosso encontro seguinte.  Chegara a hora de mudar nossas relações, de  acadêmicas para românticas.

– Polly – disse eu, na próxima vez em que nos  sentamos sob aquele mesmo carvalho – hoje não  falaremos de falácias.

– Puxa! – disse ela, desapontada.

– Minha querida – prossegui, favorecendo-a com um  sorriso – hoje é a sexta noite em que estamos juntos.  Nos demos esplendidamente bem. Não há dúvidas de  que formamos um bom par.

– Generalização Apressada – exclamou ela  alegremente.

– Perdão – disse eu.

– Generalização Apressada – repetiu ela. – Como é  que você pode dizer que formamos um bom par  baseado em apenas cinco encontros?

Dei uma risada, divertido. Aquela criança adorável  aprendera bem suas lições.

– Minha querida – disse eu, dando um tapinha  tolerante em sua mão – cinco encontros são o  bastante. Afinal, não é preciso comer um bolo inteiro  para saber se ele é bom ou não.

– Falsa Analogia – disse Polly prontamente – Eu não  sou um bolo, sou uma pessoa. Não se pode comparar  duas situações completamente diferentes e chegar à  uma conclusão análoga!

Dei outra risada, mas agora já não tão divertida. Essa  criança adorável talvez tivesse aprendido sua lição  bem até demais. Resolvi mudar de tática.  Obviamente, o indicado era uma declaração de amor  simples, direta e convincente. Fiz uma pausa,  enquanto meu cérebro privilegiado selecionava as  palavras adequadas. Depois comecei:

– Polly, eu a amo. Você é tudo no mundo para mim…  é a lua e as estrelas… as constelações no firmamento.  Por favor, minha querida, diga que será minha  namorada, senão minha vida não terá mais sentido.  Enfraquecerei, recusarei a comida, vagarei pelo  mundo aos tropeções, um fantasma de olhos vazios…

Pronto! – pensei, está liquidado o assunto. Agora ela  cai em meus braços!

– Ad Misericordiam – disse Polly.

Cerrei os dentes. Eu não era mais o Pigmalião da  mitologia; era o Dr. Frankenstein, e o monstro que eu  havia criado me tinha pela garganta. Lutei  desesperadamente contra o pânico que ameaçava me  invadir. Era preciso manter a calma a qualquer preço.

– Bem, Polly – disse eu, forçando um sorriso. – não há  dúvidas que você aprendeu bem as falácias.

– Aprendi mesmo – respondeu ela, inclinando a  cabeça com vigor.

– E quem foi que as ensinou a você, Polly? – Foi você.

– Isso mesmo. E portanto você me deve alguma coisa,  não é mesmo, minha querida? Se não fosse por mim,  você nunca saberia o que é uma falácia…

– Hipótese Contrária ao Fato – disse ela sem  pestanejar. Eu poderia descobrir através de outra

pessoa, ou até mesmo sozinha, algum dia. Não se  pode tirar conclusões definitivas baseadas em acasos.

Enxuguei o suor do rosto, já lívido – o desespero  afigurava-se nítido em meus olhos.

– Polly – insisti, com voz rouca – você não deve levar  tudo ao pé da letra. Estas coisas só têm valor  acadêmico. Você sabe muito bem que o que  aprendemos na escola nada tem a ver com a vida.

– Dicto Simpliciter. – brincou ela, sacudindo o dedo na  minha direção. Quer que eu diga o porquê?

Foi o bastante! Levantei-me num salto, berrando  como um touro indomável.

– Você vai ou não vai me namorar? – trovejei. – Não, eu não vou – respondeu ela.

– Por que não? – exigi uma resposta.

– Porque hoje à tarde prometi a Peter Johnson que  seria a namorada dele.

Quase caí para trás, fulminado por tamanha infâmia.  Depois de prometer, depois de fecharmos negócio,  depois de apertar a minha mão!

– Aquele rato! – gritei chutando a grama. – Você não  pode sair com ele, Polly. É um mentiroso. Um traidor.  Um rato.

– Envenenar o Poço – disse Polly. E pare de gritar. Acho que gritar também deve ser uma falácia.

Com uma admirável demonstração de força de  vontade, modulei minha voz.

– Muito bem – disse. Você é uma lógica. Vamos olhar  as coisas de maneira lógica então. Como pode preferir  Peter Johnson? Olhe para mim: um aluno brilhante,  um intelectual formidável, um homem com o futuro  assegurado. E veja Peter: um maluco, um boa-vida,  um sujeito que nunca saberá se vai comer ou não no  dia seguinte. Você pode me dar uma única razão  lógica para namorar Peter Johnson?

– Posso, sim. – declarou Polly.

– Ele usa um casaco de pele de marmota.