O amor é uma falácia, por Max Shulman
Eu era frio e lógico. Sutil, calculista, perspicaz, arguto e astuto – era tudo isso – e acreditem – modesto. Tinha o cérebro poderoso como um motor de Fórmula 1, preciso como uma balança de farmácia, penetrante como um bisturi. E tinha – imaginem só – apenas 18 anos. Não é comum ver alguém tão jovem com um intelecto tão gigantesco. Tomem, por exemplo, o caso do meu companheiro de quarto na universidade, Peter Johnson.
Mesma idade, mesma formação, mas burro como uma vaca. Um bom sujeito, compreendam, mas sem nada lá em cima. Do tipo emocional. Instável, impressionável. Pior que tudo, dado a manias. Eu afirmo que a mania é a própria negação da razão. Deixar-se levar por qualquer nova moda que apareça, entregar-se a alguma idiotice só porque os outros a seguem, isto, para mim, é o cúmulo da insensatez. Peter, no entanto, não pensava assim.
Certa tarde, encontrei-o deitado na cama com tal expressão de sofrimento no rosto que o meu diagnóstico foi imediato: Apendicite!
– Não se mexa. Não tome laxante. Vou chamar o médico.
– Marmota… – balbuciou ele.
– Marmota? – disse eu interrompendo minha corrida. – Quero um casaco de pele de marmota – gemeu ele.
Percebi que o seu problema não era físico, mas mental.
– Por que você quer um casaco de pele de marmota?
– Eu devia ter adivinhado – gritou ele, dando tapas na própria cabeça.
– Devia ter adivinhado que esta moda ia voltar. Como um idiota, gastei todo o meu dinheiro em livros para as aulas e agora não posso comprar um casaco de pele de marmota!
– Quer dizer – perguntei incrédulo – que estão mesmo usando casacos de pele de marmota outra vez?
– Todas as Pessoas Importantes da Universidade estão. Onde você tem andado?
– Na biblioteca, lógico! – respondi, citando um lugar não muito frequentado pelas Pessoas Importantes da Universidade.
Ele saltou da cama e pôs-se a andar de um lado para o outro do quarto.
– Preciso conseguir um casaco de pele de marmota. – Preciso!
– Por que, Peter? Veja a coisa de maneira racional. Pense! Casacos de pele de marmota são anti higiênicos. Soltam pelos. Cheiram mal. Juntam ácaros. Juntam pó. São pesados, são feios, são…
– Você não compreende – interrompeu ele com impaciência. – É o que todos estão usando. Você não quer andar na moda?
– Não – respondi sinceramente.
– Pois eu, sim! – declarou ele. – Daria tudo para ter um casaco de pele de marmota. Tudo!
Aquele instrumento de precisão, meu poderoso cérebro, começou a funcionar a todo vapor.
– Tudo? – perguntei, examinando seu rosto com os olhos semicerrados.
– Tudo! – confirmou ele, em um tom dramático.
Alisei o queixo, pensativo. Eu, por acaso, sabia onde encontrar um casaco de pele de marmota. Meu pai usara um nos seus tempos de estudante; estava agora esquecido dentro de um baú, no porão de nossa casa. E, também por acaso, Peter tinha algo que eu queria. Não era dele, exatamente, mas pelo menos ele tinha alguns direitos sobre ela. Refiro-me à sua pequena, Polly Stein.
Eu há muito desejava Polly Stein. Apresso-me a esclarecer que meu desejo não era de natureza emotiva. A moça, não há dúvidas, despertava paixões. Era daquelas que decretavam feriado nacional por onde quer que passasse. Todos paravam para vê-la passar. Até mesmo (ou principalmente) as mulheres, se corroendo de inveja… mas eu não era daqueles que se deixam dominar pelo coração. Desejava Polly para fins engenhosamente calculados e inteiramente cerebrais.
Cursava eu o primeiro ano de Direito. Dali a algum tempo estaria me iniciando na profissão. Eu sabia muito bem a importância que tinha a esposa na vida e na carreira de um advogado. Os advogados de sucesso, segundo minhas observações, eram quase sempre casados com mulheres bonitas, graciosas e inteligentes. Com uma única exceção, Polly preenchia perfeitamente todos esses requisitos.
Ela era linda. Graciosa também era. Por graciosa, quero dizer, cheia de graças sociais. Finíssima! Tinha o porte ereto, a naturalidade no andar e a elegância que deixavam transparecer a melhor das linhagens. À mesa, suas maneiras eram finíssimas. Eu já vira Polly no barzinho da escola comendo a especialidade da casa – um sanduíche que continha pedaços de carne assada, molho, castanhas e repolho – sem nem sequer umedecer os dedos.
Inteligente ela não era. Na verdade, tendia para o oposto. Mas eu confiava que, sob minha tutela, haveria de tornar-se brilhante. Pelo menos, valia a pena tentar. Afinal de contas, é mais fácil fazer uma moça bonita e burra ficar inteligente do que uma moça feia e inteligente ficar bonita.
– Peter! – perguntei – você ama Polly Stein?
– Acho-a uma boa garota – respondeu – mas não sei se chamaria isso de amor. Por quê?
– Você – continuei – tem alguma espécie de arranjo formal com ela? Quero dizer, vocês saem exclusivamente um com o outro?
– Não. Ficamos juntos, quase sempre, mas saímos os dois com outros também. Por quê?
– Existe alguém – perguntei – algum outro homem de quem ela goste de maneira especial?
– Que eu saiba, não. Por quê?
– Fiz que sim, com a cabeça, satisfeito.
– Em outras palavras, a não ser por você, o campo está livre, é isto?
– Acho que sim, bolas. Que papo estranho é esse?
– Nada, nada – respondi com inocência, tirando minha mala de dentro do armário.
– Onde é que você vai? – quis saber Peter. – Passar o fim-de-semana em casa.
Atirei algumas roupas dentro da mala.
– Escute – disse Peter, apegando-se com força ao meu braço – em casa, será que você não poderia pedir dinheiro ao seu pai, e me emprestar para comprar um casaco de pelo de marmota?
– Posso até fazer mais do que isso – respondi, piscando o olho misteriosamente. Volto na segunda.
Fechei a mala e saí. O final de semana demorou a passar. Eu estava ansioso para encontrar Peter na segunda.
– Olhe – disse a Peter, ao voltar na segunda-feira pela manhã.
Abri a mala e mostrei o enorme objeto cabeludo e fedorento que meu pai usara em seu tempo de universidade.
– Santo Pai! – exclamou Peter, com reverência. Mergulhou as mãos no pelo do casaco, e depois o rosto.
– Santo Pai! – repetiu umas quinze ou vinte vezes. – Você gostaria de ficar com ele? – perguntei.
– Sim, sim! – gritou ele, apertando a coisa sebosa contra o peito.
Em seguida, seus olhos tomaram um ar precavido. – O que você quer em troca?
– A sua namorada – disse eu, não desperdiçando as palavras.
– Polly? – sussurrou Peter, horrorizado. – Você quer a Polly?
– Isto mesmo… Ele jogou o casaco para longe. – Nunca! – declarou resoluto.
Dei de ombros.
– OK. Se você não quer andar na moda, o problema é seu…
Sentei numa cadeira e fingi que lia um livro, mas continuei espiando Peter, com o rabo dos olhos. Aquele era um homem partido em dois. Primeiro
olhava para o casaco, com a expressão de uma criança de rua à porta de um Mc Donalds. Depois dava-lhe as costas e cerrava os dentes, altivo. Depois, voltava a olhar para o casaco, com uma expressão ainda maior de desejo no rosto. Depois, virava-se outra vez, mas agora sem tanta resolução. Sua cabeça ia e vinha, o desejo aumentando, a resolução “despencando”. Finalmente não se virou mais; ficou olhando para o casaco com pura lascívia. O desejo falara mais alto.
– Não é como se eu estivesse apaixonado por Polly – balbuciou. – Ou mesmo a namorando, ou coisa parecida.
– Isso mesmo – murmurei.
– Afinal, Polly significa o que para mim, ou eu para ela?
– Nada – respondi.
– Foi uma coisa banal. Nos divertimos um pouco, só isso… ficamos, às vezes.
– Experimente o casaco – disse eu.
Ele obedeceu. O casaco cobria as orelhas e caía até os sapatos. Ele parecia um monte de marmotas mortas. Pensando bem, não tinha jeito das marmotas estarem vivas.
– Serve perfeitamente. – disse, contente. Levantei da cadeira e perguntei, estendendo a mão: – Negócio feito?
– Feito – disse ele engolindo em seco e apertando a minha mão.
Saí com Polly pela primeira vez na noite seguinte. O primeiro programa teria o caráter de uma pesquisa preparatória. Eu desejava avaliar o trabalho que me esperava para elevar a sua mente ao nível desejado. Levei-a para um jantar.
– Puxa, que jantar bacana! – disse ela, quando saímos do restaurante. Fomos ao cinema.
– Puxa, que filme bacana! – disse ela, quando saímos do cinema.
Levei-a para casa.
– Puxa, foi um programa bacana. – disse ela ao me desejar boa noite.
Voltei para o quarto com o coração pesado. Eu subestimara gravemente as proporções da minha tarefa. A ignorância daquela moça parecia aterradora. E não seria o bastante apenas instruí-la. Era preciso, antes de tudo, ensiná-la a pensar. O empreendimento a que eu me propusera era simplesmente gigantesco, e a princípio me vi inclinado a devolvê-la a Peter. Mas aí comecei a pensar nos seus dotes físicos generosos, no olhar de inveja que ela despertava nos homens e mulheres quando “desfilava” pelos corredores da universidade, na maneira como entrava numa sala ou segurava uma faca e um garfo, e aí, decidi tentar novamente.
Procedi, como sempre, sistematicamente. Dei-lhe um curso de Lógica. Acontece, que como estudante de Direito, eu frequentava na ocasião aulas de Filosofia e
de Metodologia Científica, e portanto, tinha tudo na ponta da língua.
– Polly – disse eu, quando a fui buscar para o nosso segundo programa. Esta noite iremos até o parque conversar.
– Oh, que bacana! – respondeu ela.
Uma coisa deve ser dita em favor da moça: seria difícil encontrar alguém tão bem disposta para tudo.
Fomos até o parque, o local de encontros da Universidade, nos sentamos debaixo de um velho carvalho, e ela me olhou cheia de expectativa.
– Sobre o que vamos conversar? – perguntou. – Sobre Lógica.
Ela pensou durante alguns segundos e depois sentenciou:
– Bacana! Bacana!
– A Lógica – comecei, limpando a garganta – é a ciência do pensamento. Se quisermos pensar corretamente, é preciso antes saber identificar as falácias mais comuns da Lógica. É o que vamos abordar hoje.
– Bacana! – exclamou ela, batendo as palmas de alegria, com a mesma expressão de perspicácia que se esperaria de uma foca diante da possibilidade de ganhar um peixe. Fiz uma careta de desânimo, mas segui em frente, com coragem.
– Vamos primeiro examinar uma falácia chamada Dicto Simpliciter.
– Vamos – animou-se ela, piscando os olhos com animação.
– Dicto Simpliciter quer dizer um argumento baseado numa generalização não qualificada. Por exemplo: o exercício é bom, portanto todos devem se exercitar.
– Eu estou de acordo – disse Polly, fervorosamente. – Quer dizer, o exercício é maravilhoso. Isto é, desenvolve o corpo e tudo.
– Polly – disse eu, com ternura – esse argumento é uma falácia. Dizer que o exercício é bom é uma generalização não qualificada. Por exemplo: para quem sofre do coração, o exercício é ruim. Muitas pessoas têm ordens de seus médicos para não se exercitarem. É preciso qualificar a generalização. Deve-se dizer: o exercício é geralmente bom, ou é
bom pra maioria das pessoas. Senão, está se cometendo um Dicto Simpliciter. Compreendeu?
– Não – confessou ela. – Mas isto é bacana. Quero mais. Quero mais! Fala! Fala!
– Será melhor se você parar de puxar a manga do meu casaco – disse eu e, quando ela parou, continuei…
– Em seguida, abordaremos uma falácia muito comum chamada Generalização Apressada. Ouça com atenção: você não sabe falar francês, eu não sei falar francês, Peter Johnson não sabe falar francês. Devo portanto concluir que ninguém na Universidade sabe falar francês.
– É mesmo? – espantou-se Polly.- Ninguém? Nem uma pessoa?
Reprimi a minha impaciência…
– É uma falácia, Polly. Essa generalização foi feita de maneira apressada. Não há exemplos suficientes para justificar essa conclusão.
Ela sorriu, encantadora… mas que cara de retardada – pensei.
– Você conhece outras falácias? – perguntou ela, animada. – Isto é até melhor do que dançar!
– Esforcei-me por conter uma onda de desespero que ameaçava me invadir. Não estava conseguindo nada com aquela moça. Absolutamente nada! Mas não sou outra coisa senão persistente. Quase teimoso. Continuei …
– A seguir, vem o Post-Hoc. Ouça: não vamos levar Bill conosco ao piquenique. Toda vez que ele vai junto, começa a chover.
– Eu conheço uma pessoa exatamente assim. – exclamou Polly. Uma moça da minha cidade, Eula Becker. Nunca falha. Toda a vez que ela vai junto a um piquenique…
– Polly, interrompi com energia. – Isso é uma falácia. Não é Eula Becker que causa a chuva. Ela não tem nada a ver com a chuva. Você estará incorrendo em Post-Hoc se puser a culpa na Eula Becker.
– Nunca mais farei isso. – prometeu ela contrita. – você está bravo comigo?
– Não, Polly. – suspirei – não estou bravo.
Talvez fosse mais fácil ensinar Lógica a um chimpanzé – pensei…
– Então conte outra falácia – pediu Polly.
– Muito bem. Vamos experimentar as Premissas Contraditórias. Se Deus pode fazer qualquer coisa, então pode criar uma pedra tão pesada que Ele mesmo não conseguirá levantar!
– É claro. – respondeu ela imediatamente.
– Mas, se Ele pode fazer tudo, então Ele também pode levantar a pedra – exclamei.
– É mesmo – disse ela pensativa.
– Bem, então, acho que Ele não pode fazer a tal pedra.
– Mas Ele pode fazer tudo – lembrei-lhe.
Ela coçou sua cabeça linda e vazia. Aquele cérebro poderia ser vendido como “Zero Quilômetros”… jamais fora usado!
– Estou confusa – admitiu.
– É claro que está. Quando as premissas de um argumento se contradizem, não pode haver argumento. Se existe uma força irresistível, não pode existir um objeto irremovível. Compreendeu?
– Não – mas conte outra destas histórias bacanas. Estou adorando! – disse Polly entusiasmada.
Consultei o relógio.
– Acho melhor pararmos por aqui. Levarei você para casa, e lá você pensará no que aprendeu hoje. Teremos outra sessão amanhã à noite.
Depositei-a no dormitório das moças, onde ela me assegurou que a noitada fora realmente bacana, e voltei completamente desanimado para o meu quarto. Peter roncava sobre sua cama, com o casaco de pele de marmota encolhido a seus pés como um enorme animal cabeludo. Por alguns segundos, brinquei com a ideia de acordá-lo e dizer que podia ter sua namorada de volta.
Era evidente que meu projeto estava condenado ao fracasso. Aquela moça tinha, simplesmente, uma cabeça totalmente à prova de lógica.
Mas logo reconsiderei. Perdera uma noite, por que não perder outra? Quem sabe se em alguma parte daquela cratera de vulcão adormecido, que era a mente de Polly, algumas “brasas” de inteligência ainda estivessem vivas? Talvez, de alguma maneira, eu ainda conseguisse abaná-las até que flamejassem… As perspectivas não eram das mais animadoras, mas acabei decidindo e tentei outra vez.
Sentado sob o mesmo carvalho, na noite seguinte, disse:
– Nossa primeira falácia desta noite se chama Ad Misericordiam.
Ela estremeceu de emoção.
– Ouça com atenção – comecei.
– Um homem vai pedir emprego. Quando o patrão pergunta quais são as suas qualificações, o homem responde que tem uma mulher e seis filhos em casa, que a mulher é aleijada, as crianças não têm o que comer, não têm o que vestir, nem o que calçar, a casa não tem camas, não há carvão no porão e o inverno se aproxima.
Uma lágrima desceu por cada uma das faces rosadas de Polly.
– Isso é horrível, horrível! – soluçou, quase chorando.
– É horrível – concordei – mas não é argumento. O homem não respondeu à pergunta do patrão sobre suas qualificações. Em vez disso, tentou despertar a sua compaixão. Cometeu a falácia do Ad
Misericordiam. Compreendeu?
– Você tem um lenço? – pediu ela, entre soluços.
Dei-lhe o lenço e fiz o possível para não gritar de desespero, enquanto ela enxugava os olhos.
– A seguir – disse, controlando o tom da minha voz – discutiremos a Falsa Analogia. Eis um exemplo: deviam permitir aos estudantes consultar seus livros durante as provas. Afinal, os cirurgiões levam radiografias para se guiarem durante uma operação, os advogados consultam seus papéis durante um julgamento, os construtores têm plantas e projetos que os orientam na construção de uma casa. Por que, então, não deixar que os alunos recorram a seus livros durante uma prova?
– Pois olhe – disse ela entusiasmada – esta é a ideia mais bacana que eu já ouvi na minha vida! Você é um gênio!
– Polly – disse eu com impaciência – o argumento é falacioso. Os cirurgiões, os advogados e os construtores não estão fazendo testes para ver o que aprenderam, e os estudantes sim. As situações são completamente diferentes e não se pode fazer analogia entre elas. Não tem jeito de comparar uma situação com a outra, entendeu?
– Continuo achando a ideia bacana. – disse Polly.
– Bolas! – murmurei. E prossegui, persistente (fazendo uma meia careta) . A seguir, tentaremos a falácia Hipótese Contrária ao Fato.
– Ah! Essa parece ser boa – foi a reação de Polly.
– Ouça: se Madame Curie não deixasse, por acaso, uma chapa fotográfica numa gaveta junto com uma pitada de pechblenda, nós hoje não saberíamos da existência do elemento químico Rádio. Graças a essa descoberta, hoje sabemos o que é radioatividade!
– É mesmo, é mesmo! Brilhante! – concordou Polly, sacudindo vigorosamente a cabeça.
– Você viu o filme? Eu fiquei louca com aquele filme. Aquele ator, o Walter Pidgeon é tão bacana! Ele me fez vibrar!
– Se você conseguir esquecer o Sr. Pidgeon por alguns minutos – disse eu friamente – gostaria de lembrar que o que eu disse é uma falácia. Madame Curie poderia ter descoberto o Rádio de alguma outra maneira. Talvez outra pessoa o descobrisse. Muita coisa poderia acontecer. Não se pode partir de uma hipótese baseada no acaso e tirar dela qualquer conclusão lógica.
– Eles deveriam botar o Walter Pidgeon em mais filmes – disse Polly. Eu quase não o vejo no cinema. Ele é lindo!
A impaciência voltou a me torturar. Como um ser humano pode ser tão ignorante? – pensei. Mais uma tentativa! – decidi. Mas só mais uma. A ultima! Há um limite ao que um homem pode suportar.
– A próxima falácia é chamada Envenenar o Poço. – Que bonitinho! – deliciou-se Polly.
– Dois homens vão começar um debate. O primeiro se levanta e diz: “Meu oponente é um mentiroso conhecido. Não é possível acreditar numa só palavra do que ele disser”. Agora, Polly, pense bem. O que está errado?
Vi-a enrugar a sua testa cremosa, concentrando-se. De repente, um brilho de inteligência – o primeiro que eu vira – surgiu em seus olhos.
– Não é justo! – disse ela com indignação – Isso não é nada justo. Que chance tem o segundo homem se o primeiro diz que é um mentiroso, antes mesmo dele começar a falar?
– Exato! – gritei exultante. – Cem por cento exato! Não é justo. O primeiro homem envenenou o poço antes que os outros pudessem beber dele. Atou as
mãos do adversário antes da luta começar… Polly, estou orgulhoso de você!
– Ora – murmurou ela, ruborizando de prazer.
– Como vê, minha querida, não é tão difícil. Só requer concentração. É só pensar, examinar, avaliar. Venha, vamos repassar tudo que aprendemos até agora.
– Vamos lá – disse ela, com um abano distraído de mão. Animado pela descoberta de que Polly não era uma cretina total, comecei uma longa e paciente revisão de tudo que dissera até ali. Sem parar, citei exemplos, apontei falhas, martelei “lógica” sem dar tréguas. Era como cavar um túnel. A princípio, apenas trabalho, suor e escuridão. Não tinha idéia de quando veria a luz, ou mesmo se a veria. Mas insisti. Dei duro, cavouquei até com as unhas, e finalmente fui recompensado. Descobri uma fresta de luz. E a fresta foi se alargando até que, finalmente, o sol jorrou para dentro do túnel, clareando tudo. Polly finalmente parecia ter sido apresentada ao “conhecimento”.
Levara cinco noites de trabalho forçado, mas valera a pena. Eu transformara Polly em uma lógica, e a ensinara a pensar. Minha tarefa chegara a bom termo. Fizera dela uma mulher digna de mim. Somente agora ela estava apta a ser minha esposa, uma anfitriã perfeita para as minhas muitas mansões, uma mãe adequada para meus filhos privilegiados.
Não se deve deduzir que eu não sentisse amor pela moça. Muito pelo contrário. Na mitologia grega, Pigmalião amava a mulher perfeita que moldara para si; eu também amava a minha doce Polly, que moldei com o suor do meu conhecimento. Decidi comunicar lhe os meus sentimentos no nosso encontro seguinte. Chegara a hora de mudar nossas relações, de acadêmicas para românticas.
– Polly – disse eu, na próxima vez em que nos sentamos sob aquele mesmo carvalho – hoje não falaremos de falácias.
– Puxa! – disse ela, desapontada.
– Minha querida – prossegui, favorecendo-a com um sorriso – hoje é a sexta noite em que estamos juntos. Nos demos esplendidamente bem. Não há dúvidas de que formamos um bom par.
– Generalização Apressada – exclamou ela alegremente.
– Perdão – disse eu.
– Generalização Apressada – repetiu ela. – Como é que você pode dizer que formamos um bom par baseado em apenas cinco encontros?
Dei uma risada, divertido. Aquela criança adorável aprendera bem suas lições.
– Minha querida – disse eu, dando um tapinha tolerante em sua mão – cinco encontros são o bastante. Afinal, não é preciso comer um bolo inteiro para saber se ele é bom ou não.
– Falsa Analogia – disse Polly prontamente – Eu não sou um bolo, sou uma pessoa. Não se pode comparar duas situações completamente diferentes e chegar à uma conclusão análoga!
Dei outra risada, mas agora já não tão divertida. Essa criança adorável talvez tivesse aprendido sua lição bem até demais. Resolvi mudar de tática. Obviamente, o indicado era uma declaração de amor simples, direta e convincente. Fiz uma pausa, enquanto meu cérebro privilegiado selecionava as palavras adequadas. Depois comecei:
– Polly, eu a amo. Você é tudo no mundo para mim… é a lua e as estrelas… as constelações no firmamento. Por favor, minha querida, diga que será minha namorada, senão minha vida não terá mais sentido. Enfraquecerei, recusarei a comida, vagarei pelo mundo aos tropeções, um fantasma de olhos vazios…
Pronto! – pensei, está liquidado o assunto. Agora ela cai em meus braços!
– Ad Misericordiam – disse Polly.
Cerrei os dentes. Eu não era mais o Pigmalião da mitologia; era o Dr. Frankenstein, e o monstro que eu havia criado me tinha pela garganta. Lutei desesperadamente contra o pânico que ameaçava me invadir. Era preciso manter a calma a qualquer preço.
– Bem, Polly – disse eu, forçando um sorriso. – não há dúvidas que você aprendeu bem as falácias.
– Aprendi mesmo – respondeu ela, inclinando a cabeça com vigor.
– E quem foi que as ensinou a você, Polly? – Foi você.
– Isso mesmo. E portanto você me deve alguma coisa, não é mesmo, minha querida? Se não fosse por mim, você nunca saberia o que é uma falácia…
– Hipótese Contrária ao Fato – disse ela sem pestanejar. Eu poderia descobrir através de outra
pessoa, ou até mesmo sozinha, algum dia. Não se pode tirar conclusões definitivas baseadas em acasos.
Enxuguei o suor do rosto, já lívido – o desespero afigurava-se nítido em meus olhos.
– Polly – insisti, com voz rouca – você não deve levar tudo ao pé da letra. Estas coisas só têm valor acadêmico. Você sabe muito bem que o que aprendemos na escola nada tem a ver com a vida.
– Dicto Simpliciter. – brincou ela, sacudindo o dedo na minha direção. Quer que eu diga o porquê?
Foi o bastante! Levantei-me num salto, berrando como um touro indomável.
– Você vai ou não vai me namorar? – trovejei. – Não, eu não vou – respondeu ela.
– Por que não? – exigi uma resposta.
– Porque hoje à tarde prometi a Peter Johnson que seria a namorada dele.
Quase caí para trás, fulminado por tamanha infâmia. Depois de prometer, depois de fecharmos negócio, depois de apertar a minha mão!
– Aquele rato! – gritei chutando a grama. – Você não pode sair com ele, Polly. É um mentiroso. Um traidor. Um rato.
– Envenenar o Poço – disse Polly. E pare de gritar. Acho que gritar também deve ser uma falácia.
Com uma admirável demonstração de força de vontade, modulei minha voz.
– Muito bem – disse. Você é uma lógica. Vamos olhar as coisas de maneira lógica então. Como pode preferir Peter Johnson? Olhe para mim: um aluno brilhante, um intelectual formidável, um homem com o futuro assegurado. E veja Peter: um maluco, um boa-vida, um sujeito que nunca saberá se vai comer ou não no dia seguinte. Você pode me dar uma única razão lógica para namorar Peter Johnson?
– Posso, sim. – declarou Polly.
– Ele usa um casaco de pele de marmota.