Compatibilismo
O compatibilismo é uma teoria que procura conciliar a liberdade com o determinismo. Os compatibilistas argumentam que o comportamento humano é determinado por causas naturais, como quer o determinista, mas alegam que ainda assim temos a liberdade necessária para sermos moralmente responsáveis por aquilo que fazemos. Desse modo, somos, ao mesmo tempo, livres e determinados.
Essa maneira de pensar é a que está mais de acordo com o senso comum sobre o problema do livre-arbítrio. Em primeiro lugar, porque parece óbvio que somos livres e, em segundo lugar, porque é difícil pensar como nossas ações poderiam não ser determinadas por causas, uma vez que tudo que acontece na natureza possui uma causa.
Então, aparentemente, há uma contradição entre liberdade e determinismo. Como o compatibilismo pode reconciliar essas duas coisas?
A resposta é que o compatibilismo define o conceito de liberdade de forma que está existe mesmo sendo o comportamento humano determinado por causas. Filósofos como Hobbes, Hume e Stuart Mill adotaram essa perspectiva. Vamos ver em linhas gerais como esses filósofos entenderam o conceito de liberdade.
Liberdade é fazer o que se deseja
Compatibilistas argumentam que liberdade significa a capacidade de fazer o que se deseja sem impedimentos ou restrições externas. Uma pessoa que se encontra na prisão ou está amarrada, por exemplo, não é livre. Porém, quando pode seguir seus próprios desejos, deve ser considerada livre.
O compatibilismo não rejeita o determinismo causal. Concorda com o determinismo que tudo no universo tem uma causa, mesmo as ações humanas. Não teria problema em reconhecer que a escolha que fez de ler esse texto é, ao mesmo tempo, uma escolha de livre vontade e determinada por causas anteriores. Se está lendo o texto, é porque tem o desejo de ler; se tem o desejo de ler, esse desejo por sua vez também tem uma causa; e essa causa também terá uma causa e assim indefinidamente.
Então, os compatibilistas concordam que nossas ações são determinadas completamente pelas causas que as precedem. Porém, argumentam que liberdade não significa que algo não é determinado. Significa simplesmente que a ação resultou de um desejo da própria pessoa.
Uma ação não é livre, afirmam os compatibilistas, quando há algum tipo de compulsão ou coerção. Já citamos o caso de uma pessoa que se encontra na prisão ou amarrada. Como não foi o resultado de um desejo seu, tais ações são não livres. Podemos imaginar também outra situação em que um compatibilista não reconheceria como uma ação livre. Imagine alguém perdido no deserto, com sede. Ela está com sede porque não encontra água para beber. Portanto, está fazendo algo que é contrário ao seu desejo em função das circunstâncias. Sua ação não é livre, não é uma escolha. O mesmo não poderia ser dito se estou em uma cidade com água em abundância e estou fazendo uma espécie de greve de sede para protestar contra o governo.
Porém, há casos ambíguos, que não é tão claro se se trata de uma ação livre ou não-livre. Considere uma pessoa que está sendo assaltada. O assaltante aponta uma arma e pede para que passe o telefone. Há duas opções correr o risco de levar um tiro ou dar o telefone. A pessoa escolhe a segunda opção. Aparentemente essa foi uma ação livre, já que a causa foi o desejo de permanecer vivo. Porém, um compatibilista argumentaria que nesse caso a pessoa foi forçada, quase como uma pessoa que é amarrada e obrigada a fazer o que não deseja.
Em resumo, a resposta do compatibilista ao problema do livre-arbítrio é afirmar que liberdade significa agir de acordo com a própria vontade. O que é necessário para que isso acontecer é ter várias ações disponíveis em uma dada situação (o que não ocorria com a pessoa com sede no deserto do nosso exemplo) e não ser coagido ou obrigado de alguma forma (estando preso, com uma arma na cabeça etc.). Liberdade não significa não ser determinado por causas. Assim, conclui o compatibilista, o ser humano é claramente livre em grande parte de suas ações.
Responsabilidade
O compatibilismo é uma teoria confortável. Já vimos que ele preserva duas ideias fundamentais sobre nós e o mundo: nossas ações são determinadas por causas, assim como tudo na natureza, e somos livres na maioria de nossas ações.
Vimos que o compatibilista defende que somos livres quando a ação resultou de uma escolha e não somos livres quando a ação foi o resultado de forças externas, como outras pessoas ou as circunstâncias. Consequentemente, somos responsáveis por algumas de nossas ações e não por outras.
Na nossa vida cotidiana, ser ou não responsável é fundamental para avaliar as ações de uma pessoa. Se ela fez algum ruim, como agredir ou matar alguém, deverá receber algum tipo de tratamento dependendo de se sua ação foi livre ou não. Se tenho um comportamento agressivo e é comprovado um problema psiquiátrico, então devo receber um tratamento médico. Se tenho o mesmo comportamento agressivo porém motivado pelo desejo calculado de provocar um dano, então devo ser preso.
Assim, o compatibilismo também preserva a ideia, presente na legislação e no senso comum, de que somos responsáveis por aquelas ações que foram o resultado de nossa livre escolha.
Considerando tudo o que foi dito até aqui, é natural pensar que se trata da melhor teoria sobre o problema do livre-arbítrio, afinal ela preserva e concilia ideias que fazem parte de nosso senso comum sobre a questão. Ao contrário do determinismo e, em menor medida, do libertismo.
Porém, em que medida o compatibilismo é bem-sucedido? Vários filósofos garantem que ele não é uma boa teoria. Há um debate acirrado sobre se é possível conciliar determinismo e livre-arbítrio, como quer o compatibilismo. É isso que vamos conhecer agora.
Críticas
O grande problema do compatibilismo é se de fato determinismo causal e livre-arbítrio são de fato compatíveis. Para ser realmente livre, basta sermos capazes de agir de acordo com nossa vontade, sem restrições externas? Se não sou capaz de escolher minha vontade, meus desejos, posso ser considerado livre?
Uma crítica ao compatibilismo foi apresentada por Peter van Inwagen em um artigo chamado a Incompatibilidade entre determinismo e livre-arbítrio. O filósofo afirma o seguinte:
“se o determinismo é verdadeiro, então nossos atos são a consequência das leis da natureza e de eventos no passado remoto. Mas não cabe a nós o que ocorreu antes de nascermos, e tampouco cabe a nós quais são as leis da natureza. Portanto, a consequência destas coisas (incluindo nossos atos presentes) não cabe a nós.”
Note que Inwagen não está defendendo que o determinismo é verdadeiro, apenas que se ele fosse verdadeiro, então seria incompatível com o livre-arbítrio. Seu raciocínio é mais ou menos o seguinte:
Nossas ações são o resultado das leis da natureza e do que aconteceu no nosso passado (nossos genes, que surgiram quando fomos gerados, nossa infância etc.). Essa seria uma afirmação que o compatibilista aceita, já que concorda com o determinismo.
Não fomos nós que escolhemos o que aconteceu no nosso passado nem as leis da natureza. De fato, isso simplesmente nos foi dado.
Portanto, não temos controle sobre nossas ações atuais.
O raciocínio parece válido. Ou seja, se consideramos as premissas verdadeiras (P1 e P2), então deveremos concordar também com a conclusão. Para discordar disso, teríamos que encontrar uma maneira de mostrar que pelo menos uma das premissas é falsa.
A segunda afirmação parece trivial. Ninguém defenderia seriamente que somos responsáveis pelo nosso DNA ou pelos primeiros anos de nossa educação.
Assim, resta a primeira premissa. O compatibilista concorda com ela, já que ele defende o determinismo. Ou seja, o compatibilista concorda que nossas ações são determinadas pelo que aconteceu no passado.
Portanto, a tarefa de conciliar determinismo e livre-arbítrio não parece ter sido bem sucedida.
É claro que, se tratando de um tema tão importante, essa não é a última palavra. O debate é longo, com várias respostas e novas críticas. Se quiser saber mais, os livros abaixo trazem mais informações.
Para conhecer teorias alternativas sobre o problema do livre arbítrio, consulte a página liberdade e determinismo.
Referências
John Martin Fischer, Robert Kane et. al. Four Views on Free Will. Malden: Blackwell Publishing, 2007.
Robert Kane. A Contemporary Introduction to Free Will. New York: Oxford University Press, 2005.