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Discussão sobre a teoria utilitarista: críticas e respostas

- 6 min leitura

O utilitarismo é uma teoria ética que afirma que as ações devem ser avaliadas em termos de sua capacidade de produzir o maior bem-estar possível para o maior número de pessoas. Embora essa teoria possa parecer bem-intencionada e produzir resultados razoáveis em muitos casos, também leva, de acordo com seus críticos, a consequências inaceitáveis.

Ao longo desse texto vamos conhecer duas críticas frequentes ao utilitarismo e como defensores da teoria fizeram modificações ou trouxeram novos argumentos para defendê-la.

Críticas ao utilitarismo

Deveríamos levar uma vida artificial

Robert Nozick (1938-2002) foi um filósofo americano conhecido por sua obra "Anarquia, Estado e Utopia", publicada em 1974, que se tornou uma das obras mais influentes na filosofia política contemporânea. Nozick lecionou em várias universidades, incluindo a Universidade de Harvard, onde ocupou a posição de professor de filosofia.
Robert Nozick (1938-2002) foi um filósofo americano conhecido por sua obra “Anarquia, Estado e Utopia”, publicada em 1974. Nozick lecionou em várias universidades, incluindo a Universidade de Harvard, onde ocupou a posição de professor de filosofia.

Em um livro chamado “Anarquia, Estado e Utopia”, Robert Nozick apresentou um experimento mental conhecido como a “máquina de experiência”. Ele nos pede para imaginar uma máquina na qual o indivíduo pode se conectar e experimentar, como se fosse real, tudo o que desejar. Nessa máquina, uma pessoa poderia ter experiências felizes e agradáveis ​​por toda a vida, sem nenhum sofrimento ou desconforto. A pessoa não saberia que está presa em uma máquina, e a ilusão seria perfeita.

Nozick argumenta que, se o utilitarismo estivesse correto, então deveríamos preferir viver em uma máquina de experiência perfeita. Afinal, se o que buscamos é apenas o bem-estar, e não a realidade em si, não há diferença moral entre ter experiências reais e ter experiências artificiais.

No entanto, Nozick argumenta que preferiríamos não viver em uma máquina de experiência. Ele afirma que as pessoas valorizam a realidade em si mesma, e não apenas as experiências agradáveis ​​que ela pode proporcionar.

Sendo assim, a tese de que tudo o que as pessoas querem é prazer ou bem-estar, central para o utilitarismo, parece estar errada.

Deveríamos fazer ações injustas e violar a liberdade individual

Um segundo tipo de crítica ao utilitarismo tenta mostrar que maximizar o bem-estar geral pode levar a uma série de injustiças e violações de liberdades individuais. Os dois exemplos abaixo mostram isso.

McCloskey, no artigo A non‐utilitarian approach to punishment, nos pede o seguinte:

“Suponha que um utilitarista estivesse de visita em uma área na qual houve luta racial e que, durante a sua visita, um negro estupre uma mulher branca e que motins raciais ocorram como um resultado do crime […] Suponha também que nosso utilitarista esteja na área do crime quando é cometido o crime de tal forma que o seu testemunho poderia levar à condenação de [qualquer um que ele acuse]. Se ele soubesse que uma prisão rápida pararia os motins e linchamentos, certamente, como um utilitarista, ele teria que concluir que ele teria o dever de sustentar falso testemunho para levar à punição uma pessoa inocente.”1

Essa história demonstra como o utilitarismo pode levar a decisões injustas. Ao focar exclusivamente no bem-estar geral, o utilitarismo ignora os direitos individuais e falha em proteger a justiça. A decisão de condenar o homem inocente foi tomada unicamente para evitar uma revolta popular, o que violou seu direito fundamental à vida e à liberdade.

Assim, a crítica de McCloskey ao utilitarismo é que a ética não pode simplesmente se preocupar com as consequências de uma ação, mesmo que não fazer isso possa prejudicar o bem-estar geral.

Um segundo caso que leva a essa mesma conclusão é a diversão pública de milhares de pessoas com o sofrimento de algumas poucas. 

Durante o Império Romano, nos séculos I ao IV, era comum a condenação à morte por meio de um espetáculo que envolvia a exposição de criminosos e prisioneiros a animais selvagens em arenas públicas.2

A pintura “A última prece dos mártires cristãos” (1883) de Jean-Léon Gérôme retrata um grupo de cristãos prestes a serem executados por ordem do imperador romano, por se recusarem a renunciar sua fé em Cristo. A cena se passa no Coliseu de Roma, um famoso anfiteatro utilizado para eventos públicos e espetáculos, incluindo execuções de criminosos e mártires cristãos.

Os propósitos disso eram diversos. Em primeiro lugar, a prática servia como uma forma de punição pública e dissuasão para crimes. Além disso, as execuções públicas eram vistas como uma forma de entretenimento para o povo romano, especialmente nas classes mais baixas. Os espetáculos de condenação às bestas eram organizados como eventos grandiosos, envolvendo muitas pessoas e uma grande quantidade de animais.

Entre os criminosos punidos dessa forma estavam os cristãos. Nesse período, o Império Romano perseguiu e assassinou cristãos por questões religiosas.

De acordo com o utilitarismo, argumentam os críticos, assassinar poucas pessoas para o bem-estar de milhares não seria errado. Embora a prática traga sofrimento para as vítimas, o número elevado de pessoas que se divertirão com o espetáculo faz com que a quantidade de bem-estar geral supere o sofrimento, gerando um saldo positivo.

Respostas dos utilitaristas

Utilitarismo de preferência

Algumas das respostas dos utilitaristas envolvem pequenas modificações na teoria para torná-la imune a determinadas críticas. É esse o caso do utilitarismo de preferências.

O utilitarismo de preferência busca maximizar a satisfação das preferências das pessoas. De acordo com essa teoria, a ação correta é aquela que satisfaz o maior número de preferências possíveis. Isso significa que a felicidade das pessoas é avaliada não apenas com base na quantidade de prazer ou dor que elas experimentam, mas sim na realização do que desejam. Essa versão do utilitarismo se diferencia do utilitarismo hedonista, que se concentra na maximização do prazer e na minimização da dor. Essas teorias se diferenciam em suas visões sobre o que constitui a felicidade e como devemos avaliar as consequências de nossas ações.

O utilitarismo de preferência reconhece que existem mais coisas na vida do que o prazer ou bem-estar. Como mostra a “máquina de experiência” de Nozick, não queremos apenas boas experiências, queremos também que sejam reais. Nessa versão, o utilitarismo fica imune a críticas de Nozick de que o utilitarismo nos condenaria a viver uma vida artificial.

Reavaliação das consequências

Uma segunda estratégia de resposta envolve reavaliar as consequências. Considere o caso de McCloskey envolvendo a punição de uma pessoa inocente. De acordo com o argumento, um utilitarista deveria mentir para condenar uma pessoa inocente “se ele soubesse que uma prisão rápida pararia os motins e linchamentos”.

Ocorre que na vida real esse “se ele soubesse” é uma condição impossível de satisfazer em casos como esses. Ninguém consegue garantir com certeza que uma ação específica irá produzir um determinado resultado social. A condenação do homem inocente poderia levar ao fim dos motins e linchamentos, mas talvez não. Ao contrário, talvez a mentira fosse descoberta depois de um pequeno período e novos conflitos eclodiram com ainda mais gravidade. Olhando dessa forma, a médio prazo, a condenação do homem inocente produziria um saldo gigantesco de sofrimento. 

Em relação ao cristãos jogados aos leões, um olhar mais cuidadoso para as consequências de diferentes cursos de ação dificilmente faria com que escolhêssemos espetáculos públicos de crueldade como uma festa que promove o bem-estar geral. Em primeiro lugar, ao fazer um cálculo utilitarista temos que diferenciar a intensidade do prazer e dor sentidos. O sofrimento para os cristãos não é da mesma intensidade do prazer sentido pelos espectadores. O sofrimento é prolongado e impacta a vida de familiares e, em alguma medida, da comunidade de pessoas cristãs. O prazer, ao contrário, é momentâneo e afeta apenas as pessoas que estão assistindo naquele momento. 

Mas isso não é o aspecto mais importante. Quais as consequências negativas de longo prazo para a cultura de uma sociedade que estimula a violência em espetáculos públicos? Não seria incorreto suspeitar que tais práticas estimulem uma despreocupação com o sofrimento e a vida humana de modo geral. Provavelmente ela seria uma sociedade menos empática e mais agressiva, de modo que geraria mais sofrimento do que uma sociedade que não estimula espetáculos dessa natureza.

Considerando que esses espetáculos eram financiados pelo Império Romano, um utilitarista perguntaria: que outras festas e festivais poderíamos financiar que promovem mais bem-estar? Caso os espetáculos públicos de punição fossem substituídos por outras festas, não haveria uma diminuição de bem-estar e prazer. Se a festa fosse melhor, talvez houvesse até um aumento. Por outro lado, certamente haveria uma redução significativa de sofrimento, já que não teríamos mais pessoas sendo mortas cruelmente para a diversão de muitos.

A lógica das respostas acima envolve dois pontos principais:

  1. As consequências devem ser avaliadas a longo prazo, considerando as múltiplas consequências, diretas e indiretas, que se seguem de uma ação.
  2. As ações devem ser avaliadas não apenas em pares (jogar os cristãos aos leões ou não), mas considerando múltiplas possibilidades (jogar os cristãos aos leões ou milhares de possíveis espetáculos públicos que poderiam trazer níveis de prazer equivalentes).

Referências

DAVENPORT, Caillan; MALIK, Shushma. Mythbusting Ancient Rome – throwing Christians to the lions. The Conversation. Disponível em: <https://theconversation.com/mythbusting-ancient-rome-throwing-christians-to-the-lions-67365>. Acesso em: 20 fev. 2023.

MCCLOSKEY, H. J. A non‐utilitarian approach to punishment. Inquiry, v. 8, n. 1-4, p. 249–263, 1965.

MULGAN, Tim. Utilitarismo. Petrópolis: Editora Vozes, 2012.

RACHELS, James; RACHELS, Stuart. Os Elementos da Filosofia Moral. Porto Alegre: AMGH Editora, 2013.