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Dualismo de propriedades

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O dualismo na filosofia da mente é a ideia de que existem duas categorias fundamentais de coisas com naturezas distintas: a mente e o corpo. 

Dualismo de substância e de propriedades

O dualismo de substância, muitas vezes atribuído a René Descartes, sustenta que existem dois tipos fundamentais de substâncias ou entidades no universo: físicas (ou materiais) e mentais (ou espirituais). De acordo com essa visão, a mente (ou a alma) e o corpo são tipos de substâncias distintas que interagem de alguma forma. Este ponto de vista implica uma distinção clara e categórica entre o mental e o físico.

Já o dualismo de propriedades é uma abordagem um pouco diferente. Em vez de postular dois tipos de substâncias, o dualismo de propriedades sustenta que existem dois tipos de propriedades: propriedades físicas e propriedades mentais. A mente não é vista como uma substância separada do corpo, mas como uma coleção de propriedades ou aspectos distintos que surgem de substâncias físicas (por exemplo, o cérebro). Essas propriedades mentais são reais e não redutíveis às propriedades físicas, mas não existem independentemente das substâncias físicas que as exibem.

Se você considerar um livro, por exemplo, todas as suas propriedades – desde o peso, as dimensões, a cor até a composição química do papel e da tinta – podem ser explicadas em termos físicos. No entanto, a experiência de ler o livro, de absorver o enredo, de sentir emoções com os personagens, essas são propriedades da mente que emergem do físico, que temos graças ao nosso cérebro, mas não podem ser reduzidas ou explicadas meramente em termos físicos. É essa singularidade das propriedades mentais que o dualismo de propriedades busca enfatizar.

O que leva os defensores do dualismo de propriedades a acreditarem nisso? Para entender esse ponto, vamos explorar em mais detalhes os argumentos apresentados por Thomas Nagel e Frank Jackson, dois dos proponentes mais influentes do dualismo de propriedades. 

Thomas Nagel e o argumento “Como é ser um morcego” 

Em um artigo chamado “What Is it Like to Be a Bat?” publicado em 1974, Thomas Nagel (1937) propõe a seguinte questão: como é ser um morcego? Esta pergunta aparentemente simples tornou-se o ponto de partida para uma poderosa crítica ao fisicalismo, a visão de que todos os fenômenos podem ser explicados em termos puramente físicos.

Seu pensamento começa com a percepção de que há algo que é “ser como um morcego”. Em outras palavras, os morcegos têm experiências, e essas experiências são subjetivas. A mesma coisa pode ser dita sobre todos os seres conscientes — há algo que é “ser como” esse ser.

Agora, os morcegos percebem o mundo de uma maneira muito diferente dos humanos. A maioria dos morcegos usa um sentido chamado ecolocalização para navegar e encontrar comida. Eles emitem sons de alta frequência e, em seguida, ouvem os ecos desses sons para entender onde estão os objetos ao seu redor. É uma forma eficaz de percepção, mas é fundamentalmente diferente de qualquer coisa que os humanos possam experimentar.

Um morcego no ar, emitindo ondas sonoras visíveis como círculos concêntricos a partir de sua boca.
Representação do sistema usado por morcegos para se localizar.

Nagel argumenta que, mesmo que entendamos completamente o funcionamento biológico da ecolocalização, mesmo que possamos descrever em detalhes como os morcegos processam os ecos de seus gritos, ainda assim não conseguiremos captar a experiência subjetiva de um morcego. Não podemos saber o que é “ser como um morcego” porque não temos como acessar a perspectiva única de um morcego.

Isso sugere que há algo essencialmente inacessível sobre a consciência subjetiva – algo que não pode ser capturado pela descrição objetiva que a ciência física nos oferece. Nagel argumenta que esse é um problema para o fisicalismo.

Por que isso é um problema? Bem, a ciência física é objetiva. Ela descreve o mundo do ponto de vista de fora – ela nos diz como as coisas são independentemente de qualquer perspectiva particular. Mas a experiência subjetiva, Nagel argumenta, é fundamentalmente sobre o ponto de vista de alguém. É sobre como as coisas são para o ser que está tendo a experiência.

Então, há um tipo de “fato” — um fato sobre como as coisas são para um ser consciente — que parece ser inacessível à ciência física. E isso sugere que há mais na consciência do que apenas física, apoiando a visão do dualismo de propriedades.

Frank Jackson e o argumento do conhecimento

Outro crítico do fisicalismo é Frank Jackson (1943). Em um artigo chamado “Epiphenomenal Qualia”, publicado em 1982, apresentou o que é agora conhecido como “O argumento do conhecimento” ou “O problema de Mary”. Através desse trabalho, ele desafiou o fisicalismo ao explorar o conceito de qualia — aspectos de nossa experiência subjetiva que parecem estar além da explicação puramente física. 

O argumento do conhecimento se baseia na história de Mary, uma cientista brilhante que vive em um mundo preto e branco e nunca viu cores, mas sabe tudo o que a física e a neurociência têm a dizer sobre as cores e o que ocorre no cérebro quando vemos uma.

Jackson nos pergunta: o que aconteceria se Mary visse uma cor — digamos, vermelho — pela primeira vez? Ela aprenderia algo novo sobre o vermelho? Ela teria uma nova experiência, um novo conhecimento? A maioria de nós provavelmente diria que sim, ela aprenderia algo novo. Ela saberia como é ver o vermelho.

Mas aqui está o problema para o fisicalismo: antes de ver o vermelho, Mary sabia tudo o que a física tem a dizer sobre as cores. Ela sabia tudo o que se podia saber sobre o vermelho em termos físicos. Então, se ela aprendeu algo novo ao ver o vermelho, deve haver algo sobre o vermelho — algo sobre a experiência de ver o vermelho — que a física não pode capturar. Deve haver algo mais na experiência de cor que não é físico.

Essa é a essência do argumento de Jackson. Ele usa essa ideia para argumentar que o fisicalismo é falso — que nem tudo sobre a mente pode ser explicado em termos físicos. Em vez disso, ele propõe que a mente deve ter propriedades não-físicas ou qualia.

Por exemplo, podemos descrever a cor vermelha em termos de comprimentos de onda de luz, mas isso não captura a experiência subjetiva de ver o vermelho. Essa experiência — o que é chamado de “qualia” do vermelho — é algo além da física.

Epifenomenalismo

Várias concepções são reunidas sob o título de “dualismo de propriedades”. Uma delas, defendida por Frank Jackson, é chamada de epifenomenalismo. Essa palavra é formada por “epi”, que significa “sobre” ou “além” em grego, e “fenômeno”. Ou seja, trata-se de uma teoria segundo a qual certos fenômenos mentais conscientes, como os qualia, emergem ou são subprodutos da atividade física do cérebro e do corpo, mas não têm influência causal nela.

Por exemplo, considere o processo de digestão. O desconforto que você sente quando está com fome é causado por processos físicos no seu corpo. Mas a sensação de fome em si não causa esses processos – ela é um epifenômeno deles. Da mesma forma, quando você está feliz ou triste, esses estados emocionais são causados por processos físicos no cérebro, mas eles não causam nada fisicamente.

Outra forma de ver o epifenomenalismo é através do exemplo do arco-íris. O arco-íris que vemos no céu é um epifenômeno da refração e reflexão da luz do sol nas gotas de água na atmosfera. No entanto, a existência do arco-íris em si não tem efeito causal no mundo físico – ele não causa a chuva ou o sol brilhante, ele é simplesmente um subproduto desses fenômenos.

Segundo Jackson, a evolução favoreceu atividades cerebrais complexas que servem para promover a sobrevivência e reprodução de organismos. Estes processos neurais altamente sofisticados permitem que percebamos e respondamos ao mundo ao nosso redor de maneiras eficazes. No entanto, um subproduto dessas atividades cerebrais complexas é a emergência de experiências subjetivas, ou qualia. Isso inclui coisas como a experiência de ver a cor vermelha ou sentir a dor. Apesar dessas experiências parecerem intimamente ligadas às nossas respostas e comportamentos, Jackson argumenta que elas são epifenomenais: surgem dos processos físicos ocorrendo em nossos cérebros, mas não influenciam esses processos. A evolução não selecionou esses qualia, em vez disso, eles emergem como subprodutos das atividades cerebrais que foram favorecidas pela seleção natural.

Referências

BRUCE, Michael; BARBONE, Steven. 100 Argumentos mais Importantes da Filosofia Ocidental. São Paulo: Cultrix, 2014.

CHURCHLAND, Paul M. Matéria e consciência: uma introdução contemporânea à filosofia da mente. São Paulo: Unesp, 2004.

FERNANDES TEIXEIRA, João de. Como ler a filosofia da mente. São Paulo: Editora Paulus, 2014.

JACKSON, Frank. Epiphenomenal Qualia. The Philosophical Quarterly, v. 32, n. 127, p. 127–136, 1982.

NAGEL, Thomas. What Is It Like to Be a Bat? The Philosophical Review, v. 83, n. 4, p. 435–450, 1974.