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Diálogo entre Sócrates e Eutífron sobre o que significa ser piedoso

- 6 min leitura

Introdução

Eutífron é um diálogo escrito por Platão que retrata uma conversa entre Sócrates e Eutífron. A cena de abertura acontece em frente ao tribunal do Arconte Rei ateniense. Sócrates acaba de ser acusado por Meleto de corromper a juventude e de não acreditar nos deuses em que a cidade acredita. Ele está prestes a enfrentar um julgamento por essas acusações.

Ao se aproximar do tribunal, o filósofo encontra Eutífron, que também está no tribunal, mas por um motivo diferente: deseja acusar seu próprio pai de assassinato.

Sócrates, intrigado pela presença de Eutífron e pela natureza incomum de seu caso, expressa surpresa pelo fato deste tomar uma atitude tão ousada e controversa contra seu próprio pai e pede que explique as circunstâncias que cercam a acusação. Eutífron explica que um dos empregados de seu pai

“embriagou-se e brigou com um dos nossos escravos, estrangulando-o. Então, meu pai mandou atar-lhe os pés e as mãos e o atirou em uma vala, enviando depois um homem aqui em Atenas para informar-se com o intérprete da lei sobre o que era preciso fazer. Durante esse tempo, não se inquietou mais com o preso e, como era um assassino, não se preocupou com ele, não fazendo caso de que viesse a morrer, como de fato aconteceu. Morreu devido à fome e ao frio e às amarras, antes que chegasse de Atenas o enviado”.

Eutífron acredita que, ao processar seu pai por esse ato, está cumprindo sua obrigação de fazer o que é justo e piedoso, ou seja, aquilo que deve ser feito por pessoas que respeitam os deuses. Para demonstrar a correção de suas ações, lembra que Zeus, considerado pelos homens o mais justo dos deuses, aprisionou o próprio pai, Cronos, por ele devorar seus filhos.

Sócrates, percebendo a oportunidade de uma discussão esclarecedora sobre piedade e moralidade, pede a Eutífron que defina piedade. Isso prepara o cenário para o diálogo que se segue, no qual Sócrates e Eutífron exploram a natureza da piedade e do dever moral por meio de uma série de perguntas e questionamentos, com Sócrates expondo, em última instância, as inconsistências e contradições na compreensão de Eutífron sobre esses conceitos. No cerne do diálogo está o famoso “Dilema de Eutífron”, que levanta a questão: uma ação é piedosa porque os deuses a amam ou os deuses amam uma ação porque ela é piedosa?

Diálogo

O diálogo abaixo é uma versão adaptada do original. Alguns trechos foram removidos para tornar a leitura mais breve e de fácil compreensão para estudantes do ensino médio. Para o texto completo, veja uma das edições disponíveis do diálogo de Platão.

Primeira definição de piedade

Eutífron — Digo que a piedade é o que eu agora faço: é perseguir os que cometem injustiças — por homicídio, roubo de coisas sagradas, ou qualquer outra falta dessas — quer sejam pai, mãe ou outro qualquer; e não os perseguir é que é a impiedade.

Sócrates — Talvez. Mas tu também diz que muitas outras coisas são piedosas.

Eutífron — Sim, há muitas outras formas de ser piedoso.

Sócrates — Mas lembra que te pedi para dizer o que é a piedade e não me dar uma lista de coisas piedosas. O que faz com que “perseguir os que cometem injustiças” seja um ato de piedade?

Eutífron — É verdade, minha resposta não diz o que é piedade.

Sócrates — Ensina-me, então, que aspecto é esse, para que, olhando para ele e usando-o como modelo, eu possa declarar se qualquer ação conforme a este modelo, praticada por ti ou por qualquer outro, é ou não piedosa.

Eutífron — Se assim desejas, Sócrates, assim te explicarei.

Sócrates — Explique.

Eutífron — A piedade é aquilo que é agradável aos deuses. A impiedade, por outro lado, é aquilo que não é agradável aos deuses.

Sócrates — Então, porque se irritam os deuses, Eutífron? Você concorda que os deuses vivem em desacordo uns com os outros e até se odeiam, não é mesmo?

Eutífron — Sim, como não.

Sócrates — Porém, sobre que coisas é esse desacordo que produz os ódios e os ressentimentos? Investiguemos. Se estivermos em desacordo, tu e eu, sobre o que provavelmente seria ele? Poderíamos brigar para discordarmos quanto é 2 + 2?

Eutífron — Certamente não, basta fazermos um cálculo.

Sócrates — Então, nosso desacordo seria sobre o que é justo e o que é injusto, o que é belo e o que é feio, o que é bom e o que é mau. Não são estes os assuntos por causa dos quais nos tornamos inimigos uns dos outros, se estivermos em desacordo e não pudermos atingir uma decisão satisfatória? 

Eutífron — É de fato acerca dessas coisas que surgem os desacordos.

Sócrates — E os deuses, Eutífron, se discordam entre si, não será por causa disso também?

Eutífron — Necessariamente.

Sócrates — Portanto, meu nobre Eutífron, alguns dos deuses julgam justas e injustas coisas diferentes, segundo o teu dizer, e não só belas, como feias e boas e más. 

Eutífron — Tem razão.

Sócrates — Então, Eutífron, algumas coisas são amadas por alguns deuses e odiadas por outros. Como ser piedoso nesse caso, ser agradando a um deus estará desagradando a outro?

Eutífron — Realmente, tem alguma coisa errada com a minha explicação.

Sócrates  — Então, Eutífron, você não respondeu à minha pergunta. Eu não perguntei o que é, ao mesmo tempo, piedoso e ímpio, algo que os deuses podem amar e odiar ao mesmo tempo. Você disse que a piedade é o que você está tentando fazer, punindo seu pai. Mas não é surpreendente que isso possa ser amado por Zeus, por um lado, e te fazer inimigo de Cronos e Urano, por outro. Da mesma forma, Hefesto pode amar o que você faz, enquanto Hera pode odiá-lo. 

Segunda definição de piedade

Eutífron — Diria que a piedade é o que todos os deuses amam, e o contrário — o que todos os deuses detestam — é a impiedade.

Sócrates — Ora, vejamos se isto está correto. Me responde uma coisa: a piedade é amada pelos deuses porque é piedade, ou é piedade porque é amada pelos deuses?

Eutífron — Não entendi, Sócrates.

Sócrates — Te explico. Dizemos que uma coisa é transportada e transporta; que é conduzida e conduz; que é vista e vê. Entende que todas estas coisas diferem umas das outras e em que é que são diferentes?

Eutífron — Parece-me que entendo.

Sócrates — Portanto, do mesmo modo, uma coisa é o que é amado [o amado] e outra a que ama [o amante]?

Eutífron — Como não?

Sócrates — Diz-me, então: o que é transportado é transportado porque alguém o transporta, ou por qualquer outra razão?

Eutífron — Não. Por essa.

Sócrates — Da mesma forma, a piedade não é piedade porque os deuses a amam, mas o contrário, os deuses a amam por ela ser piedade.

Eutífron — Vendo dessa forma, acho que tem razão.

Sócrates — Sendo assim, sua resposta de que “a piedade é o que todos os deuses amam” não responde a pergunta, pois ainda não sabemos o que faz ela ser o que é e por isso ser amada pelos deuses. Se alguém te pergunta “o que é um cavalo” e você diz “aquilo que é amado por todos os cavaleiros”, não estaria sendo muito esclarecedor.

Referências

PLATÃO. Box Grandes Obras de Platão. [s.l.]: Mimética, 2023.