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Diálogo entre Sócrates e Laques sobre o que significa a coragem

- 8 min leitura

No diálogo “Laques”, escrito por Platão, a questão central discutida é a natureza da coragem, uma das virtudes fundamentais na sociedade grega. O diálogo acontece no contexto de uma conversa entre Sócrates e dois generais atenienses, Laques e Nícias, além de Lísias e Melesias, dois homens preocupados com a educação de seus filhos.

O diálogo se inicia com Lísias e Melesias questionando qual seria a melhor forma de educar seus filhos, buscando garantir que eles cresçam como cidadãos virtuosos e corajosos. Diante dessa preocupação, Sócrates é chamado para ajudar a esclarecer o conceito de coragem, e o debate é conduzido por meio de um questionamento sistemático e dialético.

No trecho do diálogo abaixo, Laques começa propondo que coragem é a disposição de não abandonar o posto em campo de batalha e enfrentar o inimigo. No entanto, Sócrates aponta que isso não cobre todas as situações em que a coragem se manifesta, incluindo na cavalaria e em outros contextos fora do campo de batalha, como enfrentar doenças, pobreza e nos negócios públicos.

Laques então propõe uma definição mais geral, afirmando que coragem é uma espécie de perseverança da alma. Sócrates questiona se essa definição seria suficiente, pois nem toda perseverança é considerada coragem, especialmente quando está unida à irreflexão, o que pode ser prejudicial.

Sócrates apresenta exemplos de situações em que a perseverança unida à razão não é considerada coragem, como um médico que se recusa a ceder aos pedidos de um paciente ou um indivíduo que se joga em um poço sem conhecimento prévio de mergulho. Laques concorda com Sócrates em que esses exemplos não são corajosos, o que indica que a definição de coragem como perseverança da alma ainda é insuficiente.

Assim, o diálogo revela as dificuldades em definir a coragem e a necessidade de uma definição mais abrangente e precisa. Sócrates mostra, por meio de questionamentos e exemplos, que as definições apresentadas por Laques têm falhas e contradições.

O diálogo abaixo é uma versão adaptada do original. Alguns trechos foram removidos para tornar a leitura mais breve e de fácil compreensão para estudantes do ensino médio. Para o texto completo, veja uma das edições disponíveis do diálogo de Platão.

Diálogo

Sócrates — Não nos abalamos, amigo, a procurar saber o que seja toda a virtude; seria um trabalho enorme. De início, investiguemos apenas uma pequena parte, para sabermos se estamos em condições de dizer o que ela seja; é de supor que desse modo a investigação seja mais fácil.

Laques — Sim, façamos assim mesmo, Sócrates.

Sócrates — Que parte, então, escolheremos da virtude? Terá de ser, evidentemente, aquela que tem a ver com a hoplomaquia, e que todo o mundo pensa ser a coragem, não é assim?

Laques — É o que todos pensam, realmente.

Sócrates — Comecemos, portanto, Laques, por determinar o que é coragem: de seguida, passaremos a considerar de que maneira ela pode ser comunicada aos jovens e até onde estes conseguirão adquiri-la por meio do estudo e do exercício. Começa, portanto, como disse, por explicar-nos o que seja a coragem.

Primeira definição de coragem

Laques — Isso, por Zeus, não é difícil de explicar. Como sabes, homem de coragem é o que se decide a não abandonar o seu posto no campo de batalha, a fazer face ao inimigo e a não fugir.

Sócrates — Muito bem, Laques. Mas talvez eu não tenha me expressado com muita clareza, pois não respondeu ao que eu tinha intenção de perguntar, porém outra coisa.

Laques — Como assim, Sócrates?

Sócrates — Vou te explicar. Conforme disse, o indivíduo corajoso é o que se mantém no seu posto e luta com o inimigo?

Laques — Foi o que eu disse, de fato.

Sócrates — Mas o que diríamos ao indivíduo que, sem ficar no seu posto, combate com o inimigo, fugindo?

Laques — Como? Fugindo?

Sócrates — Como dos citas se relata, que combatem quando fogem do inimigo tanto quando os perseguem. Homero, também, elogia os cavalos de Enéias, que tão rápidos correm, diz ele, quer quando fogem, quer no encalço do inimigo ligeiro.

Laques — E com toda a razão, Sócrates, pois referia-se a carros de combate, tal como o fizeste a respeito da cavalaria cita; pois é assim, de fato, que os cavaleiros citas combatem, enquanto a infantaria helênica o faz da maneira que eu disse.

Sócrates — Com exceção, talvez, dos lacedemônios, Laques. Conta-se dos lacedemônios que em Platéia, quando se defrontaram com a barreira formada pelas tropas de escudo, não permaneceram em seus postos para lutar, mas puseram-se em fuga; porém, depois que as fileiras dos persas se desmancharam, voltaram-se para eles, à maneira da cavalaria de combate, e ganharam a batalha.

Laques — Tens razão.

Sócrates — Foi por isso que eu disse há pouco que era minha a culpa de não ter me respondido certo, por eu não ter sabido formular a pergunta. Porque não queria que me dissesses apenas quem é corajoso na infantaria, mas também na cavalaria e em tudo o que for pertinente à guerra, e não apenas na guerra, como também nos perigos do mar, quem revela coragem nas doenças, na pobreza, nos negócios públicos; mais ainda: quem é corajoso não somente com relação à dor e ao medo, mas também forte contra os apetites e os prazeres, assim quando os enfrenta como quando foge deles. Há também, Laques, quem revela coragem nessas situações.

Laques — Muita coragem, até, Sócrates.

Sócrates — Que é, portanto, coragem, e que é covardia? Foi isso o que perguntei. Experimenta explicar primeiro o que seja coragem, a qualidade que é sempre a mesma em todas essas situações.

Segunda definição de coragem

Laques — Se tivesse de referir-me à coragem presente a todas essas situações, diria que é uma espécie de perseverança da alma.

Sócrates — É assim que devemos responder essa pergunta. No entanto, eu penso que nem toda perseverança você considerará coragem. Concluo isso do seguinte: tenho certeza, Laques, de que inclui a coragem entre as coisas excelentes.

Laques — Entre as primorosas, podes ficar certo disso.

Sócrates — Assim, a perseverança da alma, quando unida à razão é bela e boa?

Laques — Perfeitamente.

Sócrates — E quando unida à irreflexão, não será o contrário disso, funesta e perniciosa, podendo provocar até a morte?

Laques — Sim.

Sócrates — E afirmaria que é excelente o que é funesto e pernicioso?

Laques — Jamais, Sócrates. Como poderia ser excelente algo que é prejudicial?

Sócrates — Mas você não concorda que se a coragem fosse, como diz, “uma espécie de perseverança da alma”, a coragem poderia ser algo pernicioso? Portanto, se a coragem é algo excelente, deve ter alguma coisa errada com a sua definição.

Laques — Tens razão.

Terceira definição de coragem

Sócrates — Logo, segundo o teu modo de pensar, coragem é a perseverança unida à razão?

Laques — Assim parece.

Sócrates — Vejamos, então, quando ela está unida à razão: apenas em alguns casos, ou em todos, tanto nas coisas grandes como nas pequenas? Por exemplo: se alguém persevera em gastar com parcimônia o seu dinheiro, sabendo que com esses gastos acabará ganhando mais, dá a isso o nome de coragem?

Laques — Eu não, por Zeus!

Sócrates — Ou então, pense no caso de um médico. O filho ou qualquer enfermo com pneumonia pede que lhe dê de beber ou de comer coisas que não deve. Mas o médico não se deixa dobrar diante da insistência, mas persiste na recusa: coragem é isso?

Laques — Isso está mais longe ainda de ser coragem.

Sócrates — E na guerra, o indivíduo persistente, que se dispõe a lutar depois de calcular prudentemente, por saber que não somente receberá ajuda dos companheiros, como terá de haver-se com inimigos inferiores e em menor número do que os que combatem ao seu lado, além de contar com a superioridade do terreno. Um indivíduo nessas condições, que persistisse após tanta reflexão e tantos recursos, seria por ti considerado mais valente do que o antagonista das fileiras inimigas, que se decidisse a permanecer no seu posto de combate?

Laques — A meu ver, Sócrates, o das fileiras inimigas é mais corajoso.

Sócrates — Mas a sua perseverança é bem mais imprudente do que a do seu inimigo e não parece ser uma “perseverança unida à razão” como disse na sua última definição de coragem.

Laques — Tens razão.

Sócrates — E o indivíduo que se joga num poço sem ser um mergulhador experiente e persiste em mergulhar, não consideraria mais corajoso do que um mergulhador perito nessa matéria?

Laques — Quem poderia sustentar o contrário, Sócrates?

Sócrates — No entanto, Laques, todos esses que se lançam desse modo nos perigos e neles persistem, são bem mais imprudentes do que os que o fazem com o conhecimento das respetivas artes.

Laques — É muito certo.

Sócrates — Mas a persistência e a audácia insensata já se nos revelaram como vergonhosas e prejudiciais.

Laques — Perfeitamente.

Sócrates — E concordamos também que a coragem é algo belo.

Laques — Concordamos, realmente.

Sócrates — Agora, porém, afirmamos outra vez que a persistência vergonhosa e insensata é coragem.

Laques — Foi, de fato, o que fizemos.

Sócrates — E és de parecer que falamos com acerto?

Laques — Eu não, Sócrates, por Zeus!

Referências

PLATÃO. Box Grandes Obras de Platão. [s.l.]: Mimética, 2023.

SCOTT SMITH, Patrick. Citas. Enciclopédia da História Mundial. Disponível em: <https://www.worldhistory.org/trans/pt/1-645/citas/>. Acesso em: 5 maio 2023.