Diálogo entre Sócrates e Lísis sobre a natureza da amizade
Introdução
Lísis é um diálogo filosófico escrito pelo antigo filósofo grego Platão, cujo foco central é a amizade e o amor entre os seres humanos. O diálogo ocorre em Atenas, onde Sócrates, o protagonista de muitos dos diálogos de Platão, interage com um jovem chamado Lísis, Menexeno e outros interlocutores.
Este diálogo, assim como muitos outros de Platão, segue o método socrático de questionamento e investigação, onde Sócrates conduz os participantes a um exame de suas próprias crenças e conceitos sobre amizade e amor. Através de uma série de perguntas e respostas, o diálogo se desenrola, levantando questões sobre a natureza da amizade, sua reciprocidade e os critérios pelos quais as pessoas são consideradas amigos.
Ao longo do diálogo, as ideias apresentadas pelos personagens são analisadas e criticadas, resultando em um desenvolvimento lento e cuidadoso do pensamento. No entanto, como em muitos dos diálogos de Platão, o leitor é deixado com aporias ou impasses filosóficos, onde nenhuma resposta definitiva é alcançada. Isso convida os leitores a continuar a reflexão sobre as questões levantadas e a explorar suas próprias ideias sobre a amizade e o amor.
No trecho abaixo, Sócrates expressa seu grande desejo de fazer amigos e sua admiração pela capacidade de Menexeno e Lísis em estabelecer rapidamente uma amizade. Sócrates faz uma série de perguntas a Menexeno sobre quem é realmente considerado amigo: o amante, o amado ou ambos. Através dessas perguntas, eles exploram a reciprocidade na amizade e consideram diferentes situações, como o amor não correspondido ou até mesmo o amor a pessoas que nos odeiam. Ao longo do diálogo, Sócrates e Menexeno enfrentam dilemas e impasses, sem chegar a uma conclusão definitiva sobre quem é considerado amigo e em quais circunstâncias.
O diálogo abaixo é uma versão adaptada do original. Alguns trechos foram removidos para tornar a leitura mais breve e de fácil compreensão para estudantes do ensino médio. Para o texto completo, veja uma das edições disponíveis do diálogo de Platão.
Diálogo
Sócrates ― Vou interrogá-lo, sim – repliquei. E tu, Menêxeno, responde ao que te perguntarei. Acontece que desde criança eu desejo um certo bem, assim como outras pessoas desejam outros bens. Com efeito, um deseja possuir cavalos, outro cães, outro ouro, e ainda outro honra, mas eu não me interesso muito por essas coisas. Contudo, quando se trata de obter amigos, sinto um ardente desejo, e preferiria ter um bom amigo a ter a mais bela codorna ou o mais belo galo do mundo, e sim, por Zeus, até mesmo um cavalo ou um cão! Creio que – pelo cão! – eu escolheria sem sombra de dúvida antes um companheiro do que o ouro de Dario, ou mesmo o próprio Dario; eis a minha paixão por fazer amigos. Então, ao ver a ti e a Lísis, fiquei impressionado e vos considero felizes, uma vez que, mesmo sendo tão jovens, sois capazes de adquirir este bem com rapidez e facilidade: tu encontraste nele, pronta e intensamente, um amigo desse jaez; assim como ele, por sua vez, encontrou em ti. Já eu estou tão longe deste bem que tampouco sei de que maneira alguém se torna amigo de outrem, e é precisamente sobre esse assunto que quero te interrogar, visto que tens experiência.
Dize-me então:
Sócrates ― Quando alguém se torna amigo de outrem, qual dos dois vem a ser amigo do outro: quem ama se torna amigo de quem é amado, ou quem é amado se torna amigo de quem ama? Ou não há diferença?
Menêxeno ― A meu ver, não parece haver diferença.
Primeira definição: a amizade não precisa ser recíproca para ser amizade
Sócrates ― Como assim? – retruquei. Ambos, então, tornam-se amigos reciprocamente, mesmo se apenas um dos dois amar o outro?
Menêxeno ― Sim, é o que me parece.
Sócrates ― E então? Não é possível que quem ama não seja correspondido pela pessoa amada?
Menêxeno ― É possível.
Sócrates ― E então? Não é possível também que quem ama seja odiado? Por exemplo, é o que parece ocorrer, às vezes, aos amantes que sofrem pelos seus favoritos: mesmo amando da forma mais intensa possível, uns pensam que não são correspondidos, ao passo que outros pensam até mesmo que são odiados. Ou isso não te parece ser verdade?
Menêxeno ― Obviamente é verdade.
Sócrates ― Então, nessa condição, um deles ama, enquanto o outro é amado, não é? – perguntei.
Menêxeno ― Sim.
Sócrates ― Então, qual dos dois é amigo do outro? O amante do amado – quer seja correspondido quer seja odiado – ou o amado do amante? Ou, em tal condição, nenhum dos dois é amigo do outro, na medida em que ambos não se amam reciprocamente?
Menêxeno ― Parece ser este o caso.
Segunda definição: amizade é quando duas pessoas se gostam
Sócrates ― Portanto, agora nossa opinião é diversa da anterior. Pois há pouco admitíamos que, se um deles amasse o outro, ambos seriam amigos; mas agora, se ambos não amarem, nenhum dos dois será amigo um do outro.
Menêxeno ― É bem possível.
Sócrates ― Portanto, ninguém será amigo do amante se ele não for correspondido.
Menêxeno ― Parece que não.
Sócrates ― Portanto, não há amantes de cavalos, se os cavalos não correspondem ao seu amor, nem amantes de codornas, de cães, de vinhos, de ginástica, nem mesmo amantes da sabedoria, se a sabedoria não corresponder ao seu amor. Ou todos eles amam essas coisas, mesmo que elas não sejam suas amigas, de modo que está mentindo o poeta quando diz:
“feliz daquele que tem como amigos crianças, cavalos de um só casco, cães de caça e hóspedes de outras terras”?
Menêxeno ― Não acredito nisso.
Sócrates ― Parece-te, ao contrário, que ele diz a verdade?
Menêxeno ― Sim.
Terceira definição: amigo é o amado e não o amante
Sócrates ― Então, o amado é amigo do amante, segundo parece, Menêxeno, quer ele o ame, quer o odeie. É o caso das crianças muito novas: umas ainda nem amam, enquanto outras já odeiam, como quando são castigadas pela mãe ou pelo pai. Entretanto, ainda que sintam ódio naquele momento, são os entes mais queridos aos pais.
Menêxeno ― Parece-me que é isso o que acontece.
Sócrates ― Portanto, segundo esse raciocínio, o amante não é amigo, e sim o amado.
Menêxeno ― Parece que sim.
Sócrates ― Por conseguinte, quem é odiado é inimigo, e não quem odeia.
Menêxeno ― É claro.
Sócrates ― Muitos, portanto, são amados pelos inimigos e são odiados pelos amigos; isto é, são amigos dos inimigos e inimigos dos amigos, se amigo é o amado e não o amante. Todavia, meu caro companheiro, isso é um grande absurdo e acho que é impossível alguém ser inimigo do amigo e amigo do inimigo.
Menêxeno ― Parece que falas a verdade, Sócrates.
Sócrates ― Então, se isso é impossível, o amante seria amigo de quem é amado.
Menêxeno ― É claro.
Sócrates ― Por conseguinte, quem odeia é inimigo de quem é odiado.
Menêxeno ― Necessariamente.
Sócrates ― Então, vem a ser necessário que concordemos com as mesmas coisas com as quais concordamos antes: muitas vezes se é amigo de quem não é amigo, muitas vezes se é amigo até mesmo de um inimigo, quando alguém ama quem não o ama ou ama até mesmo quem o odeia. Por outro lado, muitas vezes se é inimigo de quem não é inimigo até mesmo de quem é amigo, quando alguém odeia quem não o odeia ou odeia até mesmo quem o ama.
Menêxeno ― É provável que sim.
Sócrates ― O que devemos fazer então, se não são amigos nem aqueles que amam, nem aqueles que são amados e nem aqueles que amam e são amados? Ou ainda podemos indicar, além desses, outros casos em que uns são amigos de outros?
Menêxeno ― Não, por Zeus, Sócrates, eu não acho que encontraremos uma boa solução.
Referência
ANDRADE MARONNA, Helena. Lísis, de Platão: Tradução, Estudo Introdutório e Notas. Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 119. 2014.