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Argumentos contra o melhoramento genético

- 7 min leitura

O tema do melhoramento genético em seres humanos tem sido objeto de intensas discussões filosóficas e científicas. Enquanto alguns argumentam que a tecnologia pode ser usada para melhorar as características humanas, outros expressam preocupações profundas quanto aos possíveis efeitos negativos. Nesta discussão, os críticos argumentam que a manipulação genética pode levar a desigualdades sociais e a um futuro incerto. Este texto irá explorar as opiniões dos críticos e os desafios que eles apresentam para aqueles que defendem o melhoramento genético.

O melhoramento genético pode aumentar a desigualdade, criando duas classes de seres humanos

A ideia de que o melhoramento genético criaria duas classes de seres humanos é uma preocupação comum entre os críticos dessa tecnologia 1. A tese é de que aqueles que têm recursos para melhorar seus genes teriam uma vantagem significativa sobre aqueles que não têm esses recursos, criando uma sociedade desigual e dividida entre “super-humanos” e “humanos comuns”. 

Como o mundo atual é extremamente desigual em termos de riqueza entre indivíduos e países, provavelmente a riqueza seria usada para tornar ainda mais desigual as sociedades humanas. Com o melhoramento genético, os mais ricos não apenas teriam mais dinheiro, mas também habilidades superiores. Se pensarmos esse processo ao longo de algumas gerações de transmissão de herança, tanto genética quanto de riqueza, não é difícil imaginar o surgimento de dois grupos humanos extremamente desiguais.

Essa divisão poderia levar a uma sociedade onde as oportunidades e os direitos são negados ou limitados para aqueles que não podem ou não escolhem melhorar seus genes. Imagine, por exemplo, como seria para um ser humano comum competir com super-humanos por uma vaga de professor. Sem super habilidades relacionadas à inteligência, como memória, atenção, observação, raciocínio, provavelmente seria deixado para trás por candidatos que passaram por melhoramento genético nessas capacidades. De forma ainda mais grave, essas pessoas poderiam ter direitos elementares, como o direito ao voto, negados com a justificativa de que não são inteligentes o suficiente para participar de escolhas importantes e complexas como essas.

Francis Fukuyama é um dos filósofos que têm escrito sobre questões relacionadas ao melhoramento genético e biotecnologia. Ele argumenta que o melhoramento genético é uma questão complexa e desafiadora, e que deve ser abordada com cuidado e precaução.

Em seu livro Nosso futuro pós-humano: consequências da revolução da biotecnologia, afirma que o melhoramento genético é uma ameaça à igualdade humana e à estabilidade social, uma vez que a tecnologia de melhoramento genético poderia criar uma “casta” de seres humanos geneticamente superiores que seriam mais inteligentes, mais saudáveis e mais fortes do que os demais. Isso poderia levar a uma sociedade onde os indivíduos são classificados com base em suas características genéticas e onde as oportunidades e direitos são negados ou limitados para aqueles que não têm acesso a essas tecnologias 2.

As pessoas não teriam outra escolha a não ser se adaptar

Alguns pensadores liberais argumentam que o melhoramento genético deveria ser uma escolha disponível para aqueles que desejarem. Se você quer que seu filho seja melhorado, faça. Do contrário, não 3

No entanto, uma possível consequência desse processo em uma sociedade competitiva seria uma corrida desenfreada pelo melhoramento com consequências drásticas para aqueles que não optarem. 

No mundo como o conhecemos, dependemos de nossas habilidades para sobreviver e prosperar. Caso nossas habilidades não atendam às demandas sociais, nos tornamos inúteis e ficamos à margem da sociedade. 

Nesse contexto, se o melhoramento genético de habilidades humanas estivesse disponível, haveria uma pressão para que os pais garantam o melhor futuro para os filhos, o que poderia levar a uma sociedade onde a liberdade de escolha é comprometida e onde a pressão para se adequar aos padrões genéticos dominantes é alta.

Para perceber como o melhoramento genético se tornaria uma obrigação na medida em que mais pessoas o utilizassem, imagine uma disputa por vagas em um hospital entre um médico melhorado e um médico comum. Como o primeiro tem características genéticas superiores, como maior inteligência, memória, capacidade de concentração e capacidade de tomar decisões, possivelmente cometerá menos erros e fará diagnósticos mais precisos, no fim salvando mais vidas do que um médico comum. Com o tempo, provavelmente um médico comum se tornará obsoleto, da mesma forma que os computadores fabricados no início dos anos 2000 se tornaram.

No fim das contas só restará uma escolha: aderir ao melhoramento ou se tornar uma pessoa inútil ou capaz de desempenhar apenas aquelas profissões de menor qualificação, embora talvez até essas se tornem exclusivas para pessoas melhoradas. Da mesma forma que o mercado eliminou o transporte com charrete com a popularização do automóvel, poderá excluir aqueles com capacidades aquém das pessoas melhoradas geneticamente.

O melhoramento genético compromete as bases da liberdade humana

Uma segunda crítica ao argumento liberal que afirma que as pessoas deveriam ser livres para escolher melhorar seus filhos ou não, foi elaborada por Jürgen Habermas, no livro O Futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? Na avaliação do autor, os pais atuando como projetistas genéticos dos filhos comprometem as bases da liberdade humana.

Segundo o filósofo, há “uma ligação entre a contingência do início de uma vida, que não está sob nosso controle, e a liberdade de conferir uma forma ética à vida de alguém” 4. Em outras palavras, o início da vida é algo contingente, acontece por acaso, pois ninguém pode escolher como uma criança será, e é por isso que ela tem a liberdade de tomar decisões éticas sobre como viverá, escolher seus valores e objetivos.

Essa situação deixa de existir com o melhoramento genético. Na medida em que os país projetem os próprios filhos, já não é possível atribuir à “natureza” ou à “Deus” os traços e características de um indivíduo. Ao contrário, seu nascimento é resultado de um projeto e por isso está subordinado aos seus criadores. 

Para ilustrar esse ponto, imagine a seguinte situação. Os pais, amantes de futebol, desejam que seu filho seja um novo Pelé. Para isso, projetam o seu genoma de maneira a incluir as melhores características físicas e psicológicas para a prática desse esporte. O plano dá resultado: ele se torna o melhor jogador do mundo e leva o esporte a outro nível. Quem deve se sentir responsável pelo sucesso? Os pais ou o filho? Quanto mais controle um indivíduo exerce sobre outro, menos livre e responsável por suas ações ele será.

O melhoramento genético corrompe a relação entre pais e filhos

Em um livro chamado Contra a perfeição: a ética na era da engenharia genética, Michael Sandel argumenta que ter filhos é uma “abertura ao inesperado” porque, apesar de planejarmos e fazermos nossas escolhas para criar nossos filhos, a realidade é que eles se tornam indivíduos únicos com personalidades, habilidades e desafios próprios. Não há como controlarmos completamente o resultado ou o futuro de nossos filhos, e ao tê-los, estamos abertos a todas as possibilidades e incertezas que virão.

O melhoramento genético pode comprometer essa experiência na medida em que permite aos pais controlar e determinar as características específicas dos filhos antes mesmo deles nascerem. Na avaliação de Sandel, isso “desfigura a relação entre ambos e priva os pais da humildade e do aumento de empatia humana que a abertura ao inesperado é capaz de promover” 5

Atualmente, mesmo sem melhoramento genético, muitos pais buscam direcionar completamente o desenvolvimento dos filhos. Um exemplo conhecido é o caso de Richard Williams, pai de Venus e Serena Williams, que planejou a carreira de tenista de suas filhas antes mesmo delas nascerem. Ele acreditava que suas filhas poderiam se tornar as maiores jogadoras de tênis do mundo, e decidiu dedicar toda sua vida para que isso acontecesse. Começou a estudar o jogo e a buscar informações sobre treinamento e técnicas. Também contratou treinadores e comprou todo o equipamento necessário para que pudessem começar a jogar desde cedo. Williams utilizou dos recursos disponíveis em termos de educação, treinamento, experiências e equipamentos para tornar as filhas campeãs. Embora seja apenas um exemplo, ele ilustra um fenômeno que cresceu bastante nas últimas décadas: país buscando várias formas para moldar a vida dos filhos e garantir seu sucesso.

Na avaliação de Sandel, esse comportamento de controle e domínio sobre o acaso que é o nascimento de um filho seria potencializado com o melhoramento genético e os pais teriam cada vez mais poder sobre seus descendentes, corrompendo a experiência fundamental de ter um filho que é essa “abertura para o inesperado”.

O melhoramento genético diminui o papel do esforço e nosso mérito em nossas conquistas

De acordo com Michael Sandel, no livro “Contra a perfeição”, “um dos aspectos da nossa humanidade que pode estar ameaçado pelo melhoramento e pela engenharia genética é nossa capacidade de agir livremente, por nós mesmo, graças a nossos próprios esforços, e de nos considerarmos responsáveis (ou seja, dignos de orgulho ou censura) pelas coisas que fazemos e que somos” 6.

Para ilustrar esse ponto, imagine um estudante chamado João, que nasceu com um QI super elevado. Seus pais, após realizaram uma série de alterações para torná-lo mais inteligente e investiram em sua formação desde cedo. João foi matriculado nas melhores escolas e aprendeu tudo com muita facilidade.

Anos depois, ele passa na faculdade de medicina sem dificuldade e se forma com louvor, tornando-se um renomado médico. João pode ser considerado digno de orgulho por suas conquistas notáveis? Ou é o médico e os pais que deveriam ser reconhecidos, da mesma forma que elogiamos um engenheiro por construir um excelente robô?