Imagem com logo do site

Foucault e a sociedade disciplinar

- 9 min leitura

Como controlar a vida dos indivíduos? Como fazer com que eles façam exatamente o que a sociedade espera deles? Toda sociedade tem uma série de regras e cria mecanismos para fazer com que os indivíduos façam o que ela deseja. 

Quais seriam essas normas hoje? Se espera que as pessoas sejam trabalhadoras e ricas. Que sejam disciplinadas e muito produtivas. Que tenham uma família. Embora esse já seja um conceito disputado, que a família seja de um homem e uma mulher. Espera-se também que todos sejam heterossexuais. Que os homens não sejam nem muito gordos, nem muito magros. Que as mulheres sejam magras. Que não cometam crimes. 

Quais os mecanismos que a sociedade pode usar para garantir que todas essas e uma série de outras normas sejam observadas? 

É essa a questão fundamental colocada por Foucault em um de seus livros mais importantes, Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. O que encontramos nessa obra, através do conceito de sociedade disciplinar, é sua análise de uma série de mecanismos de controle social desenvolvidos a partir do século XVIII e que se encontram plenamente atuantes em nossa sociedade. 

Dois mecanismos de controle social

Fonte Wikimedia

O texto transcrito abaixo é um relato do suplício pelo qual passou, em 1757, Demiens, condenado por ter tentado assassinar o Rei francês. Essa era uma forma comum de se punir determinados criminosos nas monarquias européias até o final do século XVIII. 

[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da poria principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento.

Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d’Amsterdam]. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas…

Gravura de Jacques Callot (1592-1635) mostrando uma pessoa sendo quebrada na roda. Fonte: Bibliothèque nationale de France.
Quatro criminosos em um pelourinho, um instrumento de punição corporal que prendia a cabeça e as mãos em uma posição desconfortável e, por ser usado em público, possibilitava tanto abuso verbal quanto físico por outros cidadãos. Fonte: Britannica.

Essa é apenas uma pequena parte do relato, que segue por várias páginas com detalhes horripilantes. O suplício perdeu espaço a partir do século XIX e então entra em cena um novo sistema de punição. O texto a seguir evidencia algumas de suas características mais importantes. Trata-se de um regulamento redigido para a Casa dos jovens detentos de Paris.

Art. 17. — O dia dos detentos começará às seis horas da manhã no inverno, às cinco horas no verão. O trabalho há de durar nove horas por dia em qualquer estação. Duas horas por dia serão consagradas ao ensino. O trabalho e o dia terminarão às nove horas no inverno, às oito horas no verão.

Art. 18. — Levantar. Ao primeiro rufar de tambor, os detentos devem levantar-se e vestir-se em silêncio, enquanto o vigia abre as portas das celas. Ao segundo rufar, devem estar de pé e fazer a cama. Ao terceiro, põem-se em fila por ordem para irem à capela fazer a oração da manhã. Há cinco minutos de intervalo entre cada rufar.

Art. 19. — A oração é feita pelo capelão e seguida de uma leitura moral ou religiosa. Esse exercício não deve durar mais de meia hora.

Art. 20. — Trabalho. Às cinco e quarenta e cinco no verão, às seis e quarenta e cinco no inverno, os detentos descem para o pátio onde devem lavar as mãos e o rosto, e receber uma primeira distribuição de pão. Logo em seguida, formam-se por oficinas e vão ao trabalho, que deve começar às seis horas no verão e às sete horas no inverno.

Art. 21. — Refeições. Às dez horas os detentos deixam o trabalho para se dirigirem ao refeitório; lavam as mãos nos pátios e formam por divisão. Depois do almoço, recreio até às dez e quarenta.

Art. 22. — Escola. Às dez e quarenta, ao rufar do tambor, formam-se as filas, e todos entram na escola por divisões. A aula dura duas horas, empregadas alternativamente na leitura, no desenho linear e no cálculo.

Art. 23. — Às doze e quarenta, os detentos deixam a escola por divisões e se dirigem aos seus pátios para o recreio. Às doze e cinquenta e cinco, ao rufar do tambor, entram em forma por oficinas.

Art. 24. — À uma hora, os detentos devem estar nas oficinas: o trabalho vai até às quatro horas.

E segue com vários artigos, definindo o horário para cada detalhe da vida do detento. 

O suplício

Vigiar e Punir começa com esses dois textos, que são como duas imagens que representam os extremos de dois modos diferentes de exercer o controle sobre a sociedade e punir aqueles que não se submetem às suas leis. 

O uso do suplício foi comum até o final do século XVIII na Europa. Essa prática tinha uma série de funções. Estava ligada a um conjunto de ideias que caíram em desuso. 

É importante compreender o que significava um crime nos Estados absolutistas da época. Como as leis eram criadas pelo rei e elas  representavam a sua vontade, todo crime cometido por um súdito era visto como uma ofensa pessoal ao soberano. E como tal, exigia uma vingança. 

A punição era uma prática de vingança da parte do soberano, que buscava fazer justiça. Também servia para mostrar a insignificância dos súditos, completamente impotentes diante da vontade do rei.  E claro, o espetáculo do suplício, além de uma demonstração do poder extraordinário do Rei, um ato de vingança e uma forma de fazer justiça, era uma forma de infundir medo nas pessoas e evitar novos crimes. Esse era um dos motivos pelos quais o suplício ocorria em público, para que todos vissem. 

A disciplina

Na passagem do século XVIII para o XIX, de forma relativamente rápida, vemos os suplícios em público desaparecerem e darem espaço para as prisões como espaços de punição dos criminosos. 

Mas não é apenas o meio utilizado para a punição que muda de forma. Os objetivos que se busca alcançar com as prisões são totalmente diferentes daqueles buscados através do suplício. Fundamentalmente, não se trata mais de aniquilar, destruir, tirar a vida do infrator, de vingar um injustiça cometida, mas de recuperá-lo, ressocializá-lo, fazer com que deixe de ser um criminoso. A prisão passa a ser vista como uma espécie de escola em que certos tipos de pessoas são colocadas para aprender a viver na sociedade. 

Assim, os presídios tinham uma finalidade pedagógica. Para alcançar esse objetivo, foi desenvolvido algo que poderíamos chamar de tecnologia de adestramento. Com isso se esperava dominar o corpo e a alma do criminoso e torná-lo socialmente útil. E, para uma economia capitalista que estava nascendo, socialmente útil quer dizer “que saiba trabalhar”. 

Um dos objetivos da educação pela qual passavam os detentos era inculcar hábitos de trabalho. No final do século XVIII os crimes predominantes eram roubos cometidos por vagabundos, pessoas que não trabalhavam para ganhar a vida. Daí a importância central que a criação de hábitos de trabalho possui nas prisões modelo. Pensava-se que na medida em que passassem por uma reeducação moral e desenvolvessem habilidades de trabalho, os prisioneiros poderiam retornar à sociedade sem levar perigo e sendo úteis. 

Técnicas para adestrar o homem

Agora que já conhecemos a transformação na forma de punir os criminosos no século XVIII, podemos dar um passo adiante na compreensão das ideias de Foucault. Uma das teses mais importantes presentes em Vigiar e Punir é a afirmação de que a prisão como instituição disciplinar é uma espécie de modelo para compreender uma série de instituições desenvolvidas durante a modernidade, que também são instituições disciplinares e que também tem por objetivo um certo tipo de adestramento. 

Além da prisão, nos diz Foucault, a escola, o sanatório, os hospitais, as fábricas, o exército funcionam como instituições disciplinares e seguem princípios de funcionamento semelhantes. 

E quais são os recursos utilizados por essas instituições para adestrar o corpo e alma das pessoas? Entre os principais fatores identificados por Foucault estão: estabelecimento de horários para controlar as atividades, vigilância hierárquica, sanção normalizadora e exame. 

Controle de horários

Podemos observar o controle de horários no regulamento da prisão citado no início do texto. Mas a definição de horários específicos para a execução de certas atividades está presente em uma série de instituições. Basta pensarmos nas fábricas, com os horários de chegada, saída, de almoço etc. Nas escolas, com horário de chegada, mudanças de período, intervalo e final da aula. Aliás, alguns reformadores viam a importância do estabelecimento de horários e a obediência a uma série de comandos um dos benefícios que a escola teria a oferecer para os futuros trabalhadores. O tempo é um recurso escasso e na fábrica ele deve ser bem aproveitado. Daí a importância de a escola ensinar os estudantes a obedecer e respeitar horários.

Vigilância

Uma das formas de controlar o comportamento dos indivíduos é observá-los constantemente. Quando somos vistos, não fazemos as mesmas coisas que quando nos mantemos invisíveis. Um dos princípios por trás do funcionamento de qualquer instituição disciplinar é a visibilidade. Isso se reflete na arquitetura e distribuição espacial de muitas dessas instituições. Algumas propostas de instituições internas para estudantes no século XVIII chegaram a pensar em quartos com paredes de vidro, para que os internos soubessem que poderiam estar sendo observados e não fizessem nada de errado.

Um dos exemplos mais bem acabados desse ideal de visibilidade na arquitetura é o panóptico. Trata-se de um modelo de prisão idealizado por Bentham, um filósofo do século XIX, em que as celas dos prisioneiros estão distribuídas em forma circular em torno de uma torre central, na qual se encontra um guarda vigiando. As celas estão distribuídas de tal forma que os prisioneiros estão sempre sendo vigiados. 

Imagem do Panóptico como idealizado por Bentham.
sociedade disciplinar
Foucault pensava no panóptico de Bentham como um modelo para pensar não apenas as prisões, mas as sociedades modernas como um todo.

Nova tecnologia de poder

A partir da segunda metade do século XVIII o corpo humano passa a ser visto como algo passível de modificação, de aperfeiçoamento. 

Esse é um novo tipo de controle social, que Foucault chama de sociedade disciplinar. Pois não se limita a infundir nas pessoas o medo, como no antigo regime, ou valores que conduzem à obediência política. É mais do que isso, pois ao mesmo tempo que adestra para que todos obedeçam sem os mecanismos custosos do suplício, aumenta a capacidade produtiva e a utilidade de cada um. Surge então, com as disciplinas, a arte do corpo. No exército, nas escolas, nas fábricas, nas prisões os sujeitos passam por uma série de aprendizagens que aumentam suas habilidades, desenvolvem sua força, corrigem sua postura de tal modo que se tornam mais úteis e mais obedientes.

A partir disso não podemos entender o poder como repressão de uma vontade dada. Não se trata de uma força negativa que funciona como uma barreira contra os excessos individuais. Pelo contrário, é uma força positiva, que ao mesmo tempo que desenvolve no indivíduo habilidades que são socialmente úteis,  faz com que persigam os objetivos desejados. E mais, quanto mais bem sucedido é no primeiro aspecto, mais o será no último. Escreve Foucault:

“a totalidade do indivíduo não é amputada, reprimida, alterada por nossa ordem social, mas o indivíduo é cuidadosamente fabricado, segundo uma tática das forças e dos corpos.”

Sociedade disciplinar e capitalismo

Esse modo de funcionar da sociedade disciplinar está relacionado a uma conjuntura histórica bem específica. Por um lado, o aumento da população do século XVIII e consequentemente o aumento do número de pessoas que passam a frequentar escolas, exércitos etc. O outro aspecto da conjuntura é o aumento do mecanismo de produção, cada vez mais produtivo, mas ao mesmo tempo se deseja que se torne ainda mais produtivo. Esse é um processo que se reforça. O crescimento da economia possibilita um crescimento demográfico, ao mesmo tempo em que uma população bem treinada acelera o desenvolvimento econômico. 

Escreve Foucault

“Digamos que a disciplina é o processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é com o mínimo de ônus reduzida como força “política”, e maximizada como força útil”. 

Referências

Foucault, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014.