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Como ler um texto de filosofia

- 7 min leitura

Ler um texto de filosofia, mesmo que breve, pode ser uma tarefa desafiadora. Não é como ler um jornal ou uma história. É um pouco mais exigente. Por isso é necessário adotar algumas estratégias e ferramentas para que essa tarefa seja cumprida com êxito.

Antes de conhecermos algumas dessas ferramentas, considere que quando falamos de textos filosóficos se trata de fontes primárias. Existe na filosofia essa distinção. De um lado há textos como os de Platão, Aristóteles ou Martha Nussbaum. E por outro há textos que falam sobre esses textos primários: são livros de comentadores, livros didáticos, de divulgação e outros. Geralmente os que apresentam maiores dificuldades são os primários, já que os  didáticos, por exemplo, têm todo um cuidado em tornar mais acessíveis as ideias.

De qualquer forma, as estratégias que vamos conhecer abaixo ajudam não apenas na leitura de textos primários, mas textos argumentativos e expositivos em geral.

Movimentos do texto

Um texto de filosofia, geralmente, não conta uma história. Seu autor propõe uma resposta a um problema e procura sustentar essa resposta através de vários argumentos. Compreender um texto de filosofia é perceber isso e identificar os vários movimentos que o filósofo faz para alcançar esse resultado.

O problema

O ponto de partida de um texto é um problema, é necessário estar atento a ele. A primeira questão que se deve colocar diante de um texto é: que problema esse autor está discutindo? O texto não necessariamente apresenta explicitamente esse problema. Mas está lá, pressuposto. 

A tese

Outro movimento importante de um texto de filosofia é a apresentação de uma tese. Uma tese é uma determinada proposição ou pensamento que o autor pretende defender. Ela é a resposta ao problema proposto no texto.

Vamos ver um exemplo de problema e tese. O texto abaixo é um pequeno trecho do livro Segundo Tratado sobre o Governo Civil, de John Locke (1632-1704).

“Sobre as terras comuns que assim permanecem por convenção, vemos que o fato gerador do direito de propriedade, sem o qual essas terras não servem para nada, é o ato de tomar uma parte qualquer dos bens e retirá-la do estado em que a natureza a deixou. E este ato de tomar esta ou aquela parte não depende do consentimento expresso de todos. Assim, a grama que meu cavalo pastou, a relva que meu criado cortou, e o ouro que eu extraí em qualquer lugar onde eu tinha direito a eles em comum com outros, tornaram-se minha propriedade sem a cessão ou o consentimento de ninguém. O trabalho de removê-los daquele estado comum em que estavam fixou meu direito de propriedade sobre eles1.

No trecho acima, não é colocado nenhum problema de forma explícita mas está pressuposto. Como é apenas um trecho de um texto maior, o problema é apresentado em outro momento. Mas pelo que é dito podemos supor do que se trata a discussão: como é possível que propriedades comuns, que inicialmente não eram de ninguém em especial e todos podiam usar, possam se tornar propriedade exclusiva de uma pessoa?

A essa questão Locke responde: “o fato gerador do direito de propriedade […] é o ato de tomar uma parte qualquer dos bens e retirá-la do estado em que a natureza a deixou.” E retirar desse estado significa, através do trabalho, produzir alguma modificação naquilo que é natural. Essa é sua tese. Em seguida, Locke extrai uma consequência disso: como se dissesse, se é verdade a tese que afirmo, então o ouro que eu extraí é meu. E reafirma sua tese: “o trabalho de removê-los daquele estado comum em que estavam fixou meu direito de propriedade sobre eles.” Aqui não temos nada de novo, apenas uma reafirmação. 

Os argumentos

Entendemos que Locke está propondo uma discussão sobre em que condições as pessoas têm direito de se tornar proprietárias de recursos naturais que são bens comuns. Entendemos também que sua tese é de que é através do trabalho que um recurso natural comum se torna privado. Agora devemos perguntar: que argumentos apresenta em defesa de sua tese? 

Um filósofo não é alguém que apresenta opiniões. Ele busca sempre sustentar teses utilizando argumentos. Então sempre busque por elas em textos filosóficos. Nesse caso particular, Locke afirma o seguinte em seu livro:

Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens, cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; sobre esta ninguém tem qualquer direito, exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua2.

O ponto chave aqui é “cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa.” Ao usar seu corpo, sua força, em algo que é propriedade comum, cavando para encontrar ouro, por exemplo, ele adiciona algo de seu ao que é comum e pode por isso torná-lo sua propriedade. 

Entendendo isso, conseguimos reconstruir alguns passos fundamentais do pensamento de Locke. Percebemos qual problema o intriga, a tese que apresenta como resposta a esse problema e um de seus argumentos. 

Vamos ver mais um exemplo?

O texto a seguir discute o mesmo problema de Locke e tem conclusões diferentes. É parte do livro O que é a propriedade, de Pierre-Joseph Proudhon (1809 – 1865). 

Não está bem raciocinado: a água, o ar e a luz são coisas comuns não porque inextinguíveis mas porque indispensáveis e de tal maneira indispensáveis que por isso a natureza parece as criou em quantidade quase infinita, a fim de que a sua imensidade as preserve de toda a apropriação. Paralelamente a terra é uma  coisa indispensável à nossa conservação, por consequência coisa comum, por consequência coisa não suscetível de apropriação, mas a terra é muito menos extensa que os outros elementos, portanto o uso deve ser regulado não em benefício de alguns mas no interesse e para segurança de todos. Em duas palavras, a igualdade dos direitos é provada pela igualdade das  necessidades; ora a igualdade dos direitos, se a coisa é limitada, não pode ser realizada senão pela igualdade da posse3.

Entendeu alguma coisa?

Uma das dificuldades desse trecho é que ele foi recortado de um texto maior e perdeu o contexto. Tudo fica mais simples se considerarmos o seguinte. Proudhon está criticando outro pensador que diz ser “a água, o ar e a luz” coisas comuns, ou seja, propriedade de todos, porque existem em abundância. Pelo que podemos ler ele acredita, ao contrário, que tais coisas são comuns porque indispensáveis à existência humana. Ninguém conseguiria viver na falta de água, ar e luz. 

Compreendido esse ponto, temos que seguir seu raciocínio mais um pouco para ver onde irá chegar. Seu próximo passo é afirmar o que todos sabemos: também não podemos viver sem a terra. Afinal, onde iríamos morar  ou produzir alimentos? Considere que o autor escreve no século XIX, momento em que a maioria das pessoas vivem no campo e a terra é central na vida de todos. Mas se ela é indispensável, então ela também é algo comum e todos deveriam poder usar. Como não há terra em abundância para todo mundo, é necessário haver uma regulação de como ela será usada. 

Seguindo aqui uma sequência diferente, encontramos, no final do texto, a tese que está defendendo Proudhon. No início vemos seus argumentos.

Comparações

Textos filosóficos são conversas assíncronas. Por vezes, conversas com pessoas que já morreram há muito tempo. Não podemos guardar o que vamos lendo em compartimentos separados de nossas memórias. Temos que fazer esses textos conversarem.

Afinal, Locke pensa o mesmo que Proudhon? Em que eles divergem ou concordam? Essas também são questões importantes que devemos colocar ao ir ampliando nosso repertório de leituras.

Definição

Um filósofo, ao escrever, faz muitas coisas. Ele apresenta um problema, uma tese, defende essa tese com argumentos, apresenta ideias contrárias às suas, critica essas ideias. Enfim, faz vários movimentos para atingir os objetivos que se propõe com o texto. Ler filosofia é estar atento a isso. 

A essa lista de coisas que o filósofo faz no texto temos que acrescentar uma última: define conceitos.

Fique atento ao significado das palavras que estão sendo usadas. Por vezes essa tarefa é facilitada, porque o autor faz questão de deixar claro o que está pensando quando usa determinado conceito. Por exemplo, Mircea Eliade (1907 – 1986), no livro Mito e Realidade, define assim o conceito de mito:

“A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição4.

Assim fica fácil, sempre que ouvirmos ela falando de mito ao longo do livro saberemos do que se trata e não corremos o risco de pensar que mito é uma teoria conspiratória como a de que a Terra é plana ou outros mitos que andam por aí, como o atual presidente do Brasil.

Mas os pensadores nem sempre facilitam as coisas assim. Por isso é necessário atenção ao contexto para entender o significado de alguns conceitos que possuem vários significados. 

Ler fica mais fácil com mais leitura

Até aqui vimos algumas estratégias que irão facilitar a leitura. Em resumo, preste atenção aos movimentos do texto, perceba o que o autor está fazendo em cada parágrafo, nomeie isso. Mesmo assim, a tarefa será desafiadora.

Os primeiros textos ou livros podem parecer impossíveis de compreender. Você vai se sentir perdido, não vai pegar várias referências e ficar com uma sensação de que não entende nada. É assim mesmo. A notícia boa é que as coisas melhoram. Não com o tempo, é claro, mas com leitura. Conforme seu repertório de pensamentos e ideias for se ampliando, entenderá com mais facilidade conceitos, referências, estruturas de pensamento, tudo será mais fácil e proveitoso que no início.

Nesse texto falamos de algumas estratégias de leitura pensando a nível de análise de textos primários. Um atalho, que também facilita a leitura, é ler textos sobre textos. Livros didáticos, de divulgação, de comentadores nos auxiliam bastante nessa tarefa de compreender um texto de Platão ou Aristóteles. Mas eles tem seus problemas, simplificam as coisas, contam algumas mentiras didáticas, fazem interpretações duvidosas – isso vale para esse artigo e todos os artigos aqui do site 😉. Não tem saída, o texto primário é indispensável para uma reflexão filosófica séria. 

Referências

Eliade, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.

Locke, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Petrópolis: Editora Vozes, s.d.

Porta, Mario Ariel González. A filosofia a partir de seus problemas. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

Rogue, Évelyne. Comentário do texto filosófico. Curitiba: Editora UFPR, 2014.

Proudhon, Pierre-Joseph. O que é propriedade. Lisboa: Editora Estampa, 1975.